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"Ruth" - Entrevista a António Pinhão Botelho

Ruth (c) Antonio Pinhao Botelho_ Associa

20/10/2019

Foto: © António Pinhão Botelho / Associação 2314

Os Portuguese Cinema Days voltaram em força a Berlim e arrancaram em grande no passado dia 30 de Setembro com “Ruth”, de António Pinhão Botelho. Um filme sobre Portugal nos anos 60 estreou-se no cinema mais antigo da Alemanha, uma sala que existe desde 1907, por onde passaram David Bowie, Iggi Pop e Nina Hagen, ou onde o realizador Tom Tykwer conheceu o director de fotografia com quem criou sucessos internacionais desde "Corre, Lola, corre" até, mais recentemente, a série "Babylon Berlin”. Um cinema que tem sido testemunha da História berlinense e alemã há mais de um século, para a estreia alemã do filme "Ruth" que decorre num momento trágico da História portuguesa do século XX. O filme de estreia do realizador conta com Igor Regalla no papel de Eusébio. O jovem actor guineense é conhecido pelas novelas Água de Mar ou, mais recentemente “A Única Mulher”. No elenco constam ainda actores bem conhecidos do público português, tais como Afonso Lagarto, Fernando Luís ou Ana Bustorff.

Os Portuguese Cinema Days estendem-se até 29 de Outubro no cinema Moviemento, em Kreuzberg, "um bairro berlinense cheio de vida e diversidade. Este cinema tem uma longa tradição de acolher festivais variados, e um público curioso e internacional", como nos conta Helena Araújo, criadora e dinamizadora do evento e presidente da Associação 2314.  “É importante mostrar o cinema português na Alemanha pelos mesmos motivos que é importante mostrar bom cinema de todos os países em todos os outros países: para alargar os horizontes nacionais, para dar a conhecer outras culturas, outros temas, outras sensibilidades cinematográficas. Para além disso, importa reforçar em Berlim a visibilidade do cinema português, que nos últimos anos tem vindo a conquistar um lugar de prestígio no festival de cinema de Berlim, a Berlinale”. 

Este é um festival pensado para os portugueses, como nos explica a sua criadora e curadora. “Os Portuguese Cinema Days têm como objectivo trazer aqueles filmes que os portugueses residentes nesta cidade gostariam muito de ver, mas não conseguem apanhar em cartaz quando vão a Portugal. Por esse motivo, o processo de selecção dos filmes começa com um inquérito no facebook, para que as pessoas escolham os filmes recentes que gostariam de ver num cinema berlinense”. 

A recepção ao filme de abertura teve sala cheia e um público de várias gerações e nacionalidades: para além dos portugueses havia, entre outros, moçambicanos, brasileiros e alemães. “A sessão de Q&A foi muito participada, e mesmo depois de sair da sala as conversas com o realizador António Pinhão Botelho continuaram até tarde no foyer do cinema. As questões colocadas pelo público tornavam patentes as diferenças de idade: os mais velhos interessavam-se mais pela história de Eusébio e da rivalidade entre os clubes, os mais novos faziam perguntas sobre os aspectos mais propriamente cinematográficos. À semelhança do que já fez no ano passado na apresentação de alguns dos filmes, Tiago Cutileiro criou um momento de humor que foi muito apreciado ao exibir um cachecol do Sporting antes de dar lugar à exibição de ‘Ruth’”, disse Helena Araújo ao PT Post. A estreia contou com a presença dos Embaixadores de Portugal e de Moçambique. Após a exibição foi servido um vinho do Porto, “que contribuiu para prolongar largamente o momento de convívio - e a boa disposição…”, como nos contou a organizadora do evento.

O PT Post conversou com António Pinhão Botelho sobre a estreia do seu filme na Alemanha, o contraste entre o Portugal dos anos 60 e o Portugal actual, bem como alguns dos seus projectos actuais - e até prognósticos sobre o campeonato nacional. “O desafio do filme não foram os temas, mas sim o retratar de uma época muito específica na História de Portugal”, revelou o realizador durante a entrevista. 

É de salientar que os Portuguese Cinema Days continuam neste mês de Outubro pelo cinema Moviemento com mais três datas e quatro filmes a não perder: “Pronto, era assim”, de Joana Nogueira e Patrícia Rodrigues, “Luz Obscura”, de Susana de Sousa Dias, “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt e “Chuva é cantoria na Aldeia dos Mortos”, de João Salaviza e Renée Nader Messora.

 

Antes de mais, parabéns pela estreia de “Ruth” na Alemanha. Este é um filme tanto sobre Eusébio e a rivalidade entre Sporting e Benfica quanto sobre o Portugal da ditadura. É interessante como os temas se vão intercalando durante a narrativa. Futebol e política, dois temas "quentes" num só filme, foi um desafio?

 

Isso de facto é uma mais valia do guião: o facto do enredo principal e do nosso protagonista serem relegados para segundo plano por causa do clima político nos dois continentes e da rivalidade (muito actual) entre os dois clubes de Lisboa. Tudo isso numa espécie de história  de espiões à volta da figura futebolística mais mediática do século XX do nosso país. O desafio do filme não foram os temas, mas sim o retratar de uma época muito específica na história de Portugal. As nossas cenas exteriores em Lisboa foram literalmente filmadas no meio de turistas. A cidade está cheia de anacronismos, daí ter filmado muito para as fachadas dos prédios, para o chão e para o céu de modo a evitar tudo o que não era de época. 

 

Disseste em entrevista à Time Out que o estalar da guerra em Angola, o assalto ao Santa Maria ou as pressões da ONU e da administração Kennedy sobre Portugal passam para segundo plano no filme, porque o que importa é onde vai jogar o Eusébio afinal. E disseste que actualmente se passa o mesmo, isto é, que em Portugal ainda se discute mais futebol do que outros temas pulsantes da actualidade. Achas que os portugueses continuam, na sua essência, iguais ao que eram há sessenta anos?

 

Iguais não. Portugal já não é uma ditadura. Há sim, neste momento, um monopólio futebolístico do tempo de antena nos canais de televisão em Portugal, algo que poderá ser uma herança desse tempo. Todas as cadeias televisivas têm programas de análise desportiva todos os dias da semana que consomem o prime time da televisão portuguesa. As pessoas são capazes de discutir os lances polémicos do dérbi durante 7 dias, mas incapazes de discutir questões sociais, políticas ou ambientais.

 

O futebol é a nossa maneira de meter a cabeça na areia, como a avestruz?

 

Durante a ditadura entendia-se o futebol existir como um escape. Nos dias de hoje é grave e é uma espécie de cegueira opcional. Eu adoro futebol, mas só durante 90 minutos.     

 

Quando o filme passou em Portugal, quais foram as reacções dos adeptos do Sporting e do Benfica?

 

Tendo em conta que o filme estreou no fim-de-semana em que o FC Porto se sagrou campeão e poucos dias depois houve o escândalo da Academia do Sporting (os ataques em Alcochete) os adeptos dos clubes lisboetas estavam com neuras. Mas o filme retrata uma história verídica em que, quer o Benfica, quer o Sporting, ficam um pouco mal vistos durante toda a operação Ruth. No entanto, é um filme escrito por uma benfiquista, realizado por um benfiquista sobre o maior benfiquista de todos os tempos e sobre uma situação em que o Benfica leva a melhor. É natural criar uma "pequena comichão” em alguns adeptos. Mas, apesar do clubismo, o filme foi bem recebido.

 

Ao longo do filme não há cenas de jogadores em campo, como seria talvez de esperar. Há, isso sim, imagens de arquivo no final. Porquê esta escolha? Nenhuma encenação faria jus ao grande jogador que foi Eusébio?

 

O filme é sobre o Eusébio que desconhecemos, o pré-lenda, e sobre o backstage do futebol. Futebol, como desporto, é um assunto mais que secundário no filme. Temos este talento em bruto (Eusébio) que só quer jogar futebol mas as intrigas entre os clubes e as situações políticas em Portugal e Moçambique impedem o jovem Eusébio de concretizar esse sonho. Assim, a narrativa acompanha estes entraves "impedindo" também os espectadores de ver jogar o pantera negra. E como o filme acaba na primeira subida ao relvado em jogos oficiais, deixamos um aperitivo daquilo em que Eusébio acabou por se tornar. 

 

Como chegaste ao ator guineense Igor Regalla para o papel de Eusébio? Achaste-o um jovem ator promissor apesar de ter mais experiência em novela do que cinema?

 

O Igor ganhou o casting porque tinha um olhar doce e tímido que faz lembrar o Eusébio, que até à sua morte foi uma figura pública discreta e envergonhada. Não sendo parecido com o Rei, Igor encarna-o de uma forma genuína através da sua postura e da sua doçura. O dia da rodagem em que ele vestiu a camisola do Benfica nos balneários foi memorável. Fico arrepiado só de pensar nisso, pois parecia que algo maior nos estava a acontecer no set.

 

Sendo benfiquista, eras/és também tu com certeza um fã do Eusébio. O que mais te fascinava no Pantera Negra, como ficou também conhecido?

 

Tanta coisa... mas acho que o jogo de Portugal-Coreia de 1966 e o Benfica-Real Madrid de 1962 são exibições perfeitas. São dois jogos que imortalizam Eusébio na História. Foi muito por causa desses jogos que nasceu a lenda do homem que se viria a tornar o Rei. 

 

E alguma vez estiveste com ele?

 

Eu tive a sorte de conhecer o Eusébio. Estive com ele várias vezes. Nasci numa altura em que ele já tinha um estatuto de ícone: o Rei. Sempre fiquei envergonhado ao falar com ele, pois para mim ele era o mais próximo que existia de Deus na terra. Quando a minha mãe nos apresentou ele disse-me que o meu avô, Carlos Pinhão - jornalista d'A Bola - era um grande homem. Sorri, mas fiquei estático. Um Deus a elogiar o meu avô...

 

E a pergunta da praxe: achas que o Benfica ganha o campeonato este ano? 

 

Espero que sim. Sou um pouco pessimista por definição pois cresci durante os anos 90 e os 2000, a época de ouro do FC Porto. Acho que o Benfica atravessa um bom ciclo, mas prognósticos... "só no final do jogo", como dizia o futebolista João Pinto. 

 

Voltando agora ao cinema; tu já és realizador há vários anos, "Inferno", "Esquadrão do Amor" ou "Filho da mãe" são exemplos de séries que realizaste. “Ruth” é a tua primeira longa, sendo que fizeste umas curtas pelo meio, entre elas "Rio" ou "Minutes". Como surgiu este projecto? Decidiste mudar de rumo?

 

O Paulo Branco encomendou um guião sobre o Eusébio à argumentista Leonor Pinhão - minha mãe - que teve a ideia de fazer o filme sobre este episódio pouco conhecido da vida de Eusébio, o "roubo" de Ruth. Só depois do guião estar completo é que me convidaram para ser o realizador. Algo que seria impossível de recusar. Um projecto que unia os dois mundos em que cresci: cinema e desporto (a minha mãe também é jornalista desportiva). Quanto ao meu currículo televisivo e à transição para a longa-metragem foi algo natural. Eu sempre me considerei mais cinéfilo do que cineasta. Gosto mais de cinema do que de televisão. Mas acho que não teria sido capaz de realizar o “Ruth” sem a experiência de anos de televisão, onde somos obrigados a ser mais práticos e rápidos e a agir sobre os problemas e situações que surgem no dia a dia a uma velocidade vertiginosa.   

 

És filho de um realizador de cinema, com certeza trazes na bagagem vários ensinamentos e conselhos dele que te ajudam a dar os primeiros passos na 7ª arte…

 

Sim, de facto seria difícil não ter essa bagagem. Desde pequeno visito sets de filmagem. Sempre vi o meu pai a trabalhar e das primeiras coisas de que me lembro é de ficar impressionado com o silêncio que existe numa rodagem. Ele é um óptimo professor de cinema. Recordo-me de uma entrevista que ele deu a falar sobre a importância do John Ford na história do cinema e de eu ficar vidrado e cativo de todas as suas palavras. O meu pai sempre foi honesto com o trabalho dos seus filhos. É o melhor crítico e consegue ser brutalmente honesto na apreciação dos nossos projectos - mesmo que por vezes não estejamos de acordo.

 

Sabemos que estás a trabalhar na adaptação de "Ruth" para série, podes falar mais sobre isso?

 

O filme “Ruth” foi vendido à RTP e à CMTV num formato minissérie de dois episódios. É uma versão do filme com uma montagem e com cenas diferentes, sendo o primeiro episódio praticamente todo em Moçambique e o segundo em Lisboa.  

 

Por último, que projectos tens em mãos? Vêm aí novos filmes?

 

Com sorte - porque, apesar de tudo, fazer cinema em Portugal requer alguma - terei a oportunidade de adaptar o livro "O que Diz Molero" de Dinis Machado. É um livro que mudou, de certa forma, a minha vida. Outro projecto que adoraria adaptar, mas teria que ter um orçamento de um grande filme europeu, seria o livro do Robert Wilson "Último Acto em Lisboa" (A Small Death in Lisbon). É sobre um alemão, Klaus Felsen, que em 1941, devido à sua insolência para com o governo nazi de Hitler, é enviado para Portugal para supervisionar a minagem de volfrâmio. Ao mesmo tempo, o livro relata uma morte de uma adolescente nos anos 90 em Lisboa e, à medida que a investigação policial avança, descobrem-se ligações às consequências das acções de Felsen – desde a metade dos anos 40 até ao 25 de Abril de 1974.

Entrevista feita por Rita Guerreiro e Helena Araújo

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

Helena Araújo

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Helena Araújo (*1963), casada, dois filhos. Estudou economia na Faculdade de Economia do Porto. Vive na Alemanha desde 1989, e em Berlim desde 2007, onde trabalha como tradutora e guia-intérprete. Autora do blogue “dois dedos de conversa” (*2004), e co-autora do livro “O Fio À Meada - Diálogos Imprevistos”.

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