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“Sou um grande admirador da obra da minha mãe e do meu pai” - entrevista a Nick Willing

Paual REgo Secrets and stories (C) Promo

23/10/2019

Foto: © Paula Rego/ Nick Willing

“Paula Rego, histórias & segredos” é um documentário feito por Nick Willing, filho da pintora, e produzido pela Kismet Films para a BBC. Em Portugal, a ante-estreia teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian em Abril de 2017, com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do antigo Presidente Jorge Sampaio, entre outras personalidades da cultura. A estreia nacional teve lugar no cinema da Villa, em Cascais, e precedeu a inauguração de uma exposição com cerca de 80 obras da artista e marido, Victor Willing, que teve lugar na Casa das Histórias Paula Rego com curadoria de Nick Willing e Catarina Alfaro, Coordenadora de Conservação e Programação do museu.

 

A exibição de “Paula Rego, histórias & segredos” acontece a 26 de Outubro pelas 19h no Zeughaus Kino Berlin e integra a programação do Doku.Arts. Estreia na Alemanha, o documentário vem na sequência da exposição que esteve patente de 8 de Agosto a 7 de Outubro no espaço Kunstraum do Camões Berlim. “A primeira vez que peguei numa máquina de filmar foi a máquina do meu avô, o pai da minha mãe “, disse à RTP Nick Willing durante a inauguração. Há muitos anos que o realizador perseguia a ideia de fazer um filme sobre a sua família e a sua mãe. “A minha mãe sempre disse que não queria fazer documentários. Mas, finalmente, há dois anos atrás, ela aceitou”, concluiu. 

 

O filme explora os anos vividos em Portugal, na casa da Ericeira, a posterior radicação da família em Inglaterra e a ascensão da carreira da pintora a partir de Londres, a cidade que a levou ao reconhecimento internacional. Em 2010, foi nomeada “Dame Commander of The Order of the British Empire" pela Coroa Britânica, pela sua contribuição para as artes. Em 2016, recebeu a Medalha de Honra da Cidade de Lisboa. A 16 de Julho deste ano, Paula Rego recebeu a Medalha de Mérito Cultural do Governo Português. A Ministra da Cultura, Graça Fonseca, justificou a distinção por Paula Rego ser “uma artista extraordinária, que sempre procurou transformar a realidade através da arte. E é mulher e portuguesa. Portugal tem um imenso orgulho em poder afirmá-lo”. Juntamente com Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego é a pintora portuguesa mais aclamada internacionalmente. 


Nick Willing leva-nos por uma viagem de altos e baixos da vida de Paula Rego, hoje com 84 anos, num ambiente familiar pleno de histórias e segredos que ficamos a conhecer mais em detalhe. Tudo isto com um entusiasmo e orgulho únicos, ou não fosse Nick Willing, afinal, um profundo admirador e conhecedor da obra da sua mãe. “Sou um grande admirador da obra da minha mãe e do meu pai, que também era pintor. Eu acho fantástico ter uma mãe assim”, disse em entrevista à Berlinda/ PT Post.

Primeiro uma pergunta sobre si e a língua portuguesa: viveu em Portugal durante a infância e depois esteve maioritariamente em Inglaterra, onde o contacto com a língua portuguesa foi decerto menor. Como manteve a ligação com a língua da sua mãe? Em casa falava-se mais em inglês do que português? Até hoje, como percebemos pelo documentário, a comunicação entre vocês é feita em inglês.  

Eu nasci em Londres, mas fomos para Portugal quando eu tinha uns 6 meses. A maior parte da minha infância foi passada em Portugal. Nessa época, falava quase sempre em português. Mas era o português de uma criança. Sempre falei com o meu pai em inglês, mas ele também falava português, só que tinha um sotaque horrível. Depois quando eu tinha uns 11/12 anos fui para uma escola interna em Inglaterra e aí tive que aprender mesmo. Não só a língua inglesa, mas também aprender a perceber os ingleses, que são uma raça muito estranha. (risos) Em Inglaterra era raro ouvir alguma palavra de português. Até há 3 ou 4 anos atrás eu falava praticamente só inglês. Depois, o que aconteceu foi que a minha mãe me pediu para ir a Portugal tratar de alguns assuntos relacionados ao museu feito para ela, a Casa das Histórias Paula Rego. Eu sempre achei que a minha irmã Caroline, que falava melhor português do que eu, é que devia ir. E a minha mãe disse: não é isso, é que tu és homem, e em Portugal isso ainda conta. Eu não acreditava que Portugal era assim, mas acabei por aceitar a responsabilidade. Comprei um fato muito bonito, arranjei um advogado português e fui a Lisboa. O que descobri, é que a minha mãe tinha razão. Fiquei espantado. Não é assim em Inglaterra, temos muitos problemas, mas não deste tipo. Depois apercebi-me então que para poder negociar e ter sucesso em Portugal, precisava de falar bem português. E nessa altura o meu português era ainda de uma criança, estava preso numa criança de 12 anos. Portanto tive que aprender a falar e aproveitava todas as oportunidades. Pouco a pouco, comecei não só a lembrar-me do meu português de infância, mas também a aprender um português melhor, de adulto. Depois quando voltei a Inglaterra, comecei a trabalhar com a minha mãe no documentário. Cada vez que estávamos juntos falava com ela em português.

 

Ah sim? E porquê?

Por duas razões: quando éramos mais próximos era quando eu era criança. E quando eu era criança, falávamos português. Portanto essa é a memória da nossa relação entre mãe e filho. Era mais íntimo falarmos português. E a segunda razão, é que o português é uma língua mais divertida. Os ingleses pensam que são os grandes comediantes do mundo, mas é mais fácil fazer troça e mais brincadeiras em português. Também é verdade que os portugueses podem ser muito melancólicos. (risos) A experiência que eu tenho com amigos e família em Portugal e Inglaterra, é que o português é uma língua muito mais divertida, com muito mais luz do que escuridão. E portanto agora falo melhor, mas é por conta de eu ter querido aprender a falar português. Agora vou a Portugal com mais frequência e ajuda-me muito a falar português. Eu gosto mais de falar português do que inglês. Português é uma língua muito mais gira. 


 

O filme explora sobretudo o reconhecimento que Paula Rego conseguiu obter em Inglaterra. Mais haveria a dizer sobre o seu percurso em Portugal, por exemplo as exposições na Gulbenkian ou mesmo a criação do edifício dedicado ao seu trabalho há 10 anos, a Casa das Histórias de Paula Rego em Cascais. Isso deve-se ao facto de se encontrar a viver em Inglaterra e não em Portugal? Ou ao facto de o documentário ser uma produção primeiramente para o mercado britânico? 

O filme foi feito para a BBC. Como disse antes, os ingleses não falam nem uma palavra de português, portanto não faria sentido ser a língua do filme. Mas essa não é a única razão. A língua internacional do cinema é o inglês. Portugal, como talvez saiba, é um país onde é difícil arranjar orçamento para fazer um filme. E temos que pensar a Paula como uma artista inglesa. É uma coisa um bocadinho complexa, mas vou tentar explicar da maneira mais simples possível. O sucesso da Paula Rego é feito em Inglaterra. Se ela tivesse ficado em Portugal a vida toda, é possível que tivesse tido sucesso em Portugal, mas não sucesso mundial - estamos a falar de uma artista que é exposta não só em Inglaterra e Portugal, mas na América, França, Espanha, China, Índia… no mundo todo. Foi uma carreira criada em Inglaterra, em Londres. O mundo da arte internacional vive em Londres e Nova Iorque. Em Lisboa não. A Paula Rego viveu quase a vida toda em Londres, o estúdio é em Londres, a maior parte das obras foram quase todas feitas em Londres - desde 1952 até agora. O que é diferente com as obras da Paula Rego é que as histórias - o conto que está ali metido - é quase tudo português (risos). É um coração português com uma mente inglesa. Ela fala as duas línguas igualmente bem. Os ingleses pensam que ela é inglesa. Vive em Inglaterra desde 1951 e tem passaporte inglês, só.

 

Não fez passaporte português? 

Quando ela se casou, em 1959, no tempo do Salazar, em Portugal só se podia ter um passaporte - e escolheu o passaporte inglês, que a ajudou muito. Nos anos 60, quando ela começa a criticar o governo do Salazar, a PIDE e o governo português não tocaram nela. Ela tinha muitos amigos, artistas e poetas, que foram logo para interrogação. E ela escapou a isso. E a grande razão pela qual ela escapou a isso foi por ter apenas passaporte inglês. Era inglesa, e claro, os portugueses não queriam ofender os ingleses... 
 

O filme esteve no Festival do Rio no ano passado, como foi recebido? 

Teve um impacto bastante grande, porque o filme fala sobre a luta contra o fascismo e o direito ao aborto, a censura. Foi há dois anos, mesmo quando o Bolsonaro estava quase a ser eleito presidente. Na plateia houve pessoas a chorar. O público ficou bastante emocionado ao ver o filme e estas lutas que aconteceram em Portugal há bastante tempo atrás e que pareciam estar a chegar ao Brasil. 

 

E como surgiu a oportunidade agora, passados dois anos, mostrar o documentário agora em Berlim?

Isto é uma coisa que leva tempo. O mundo do cinema e dos filmes da televisão é muito difícil.  (risos) O filme passou na Holanda, França, Espanha, Canadá, Rússia, mas na Alemanha só agora surgiu a oportunidade de o mostrar. Às vezes pergunto-me se é por a Paula Rego ser mulher… Os grandes artistas alemães são quase todos homens, são gigantes da História de Arte da Alemanha. Há algumas mulheres mas não têm tanto respeito. 

 

As pinturas sobre o aborto são algumas das mais importantes naquela que é ainda uma discussão actual e central do feminismo. Em Maio deste ano, Paula Rego chamou as recentes políticas americanas que criminalizam o aborto de “grotescas” numa entrevista para o jornal britânico The Guardian. Este posicionamento pró-liberalização do aborto mostra que a pintora estava à frente do seu tempo e continua coerente nas suas lutas. O que tem a dizer desta sua determinação e como ela impacta o seu trabalho? 

Isto para ela é pessoal. São lutas pessoais. Ela passou por isso e sabe que dar esses direitos às mulheres é uma coisa humana, não é uma coisa política. Ou não devia ser. A maioria das leis contra o aborto são feitas por homens, que não tem ideia do sofrimento das mulheres e raparigas que passam por isso. Para a minha mãe é uma coisa pessoal. Ela é política mas é porque tem que ser assim. A maior parte das obras dela não são políticas, são histórias sobre relações interiores da família. É uma coisa mais íntima e emocional. Mas cada vez que acontece algo no mundo que a choca, a única maneira que ela tem para se manifestar e ter uma voz  é através da pintura. Eu sou um grande admirador da obra da minha mãe e do meu pai, que também era pintor. Eu acho fantástico ter uma mãe assim. Sempre achei: se eu vou fazer algum projecto tem que ser algo especial para mim, e por isso é que escolhi os filmes. Eu por acaso comecei a fazer desenhos animados quando era pequeno. Fazia muitos desenhos com a minha mãe. Depois cresci e comecei a fazer desenhos animados. Mais tarde, interessei-me pelo documentário e filmes de ficção. 

 

Fazer este documentário deve ter-lhe trazido algumas memórias difíceis: problemas psicológicos da sua mãe, dificuldades financeiras por que passaram… isso tornou o processo de realização e edição mais difícil? 

Bem, foi também algo libertador. Depois de quase 55 anos, a minha mãe finalmente começou-me a contar a vida dela de uma maneira mais honesta. Ela tinha alguns segredos. Para mim foi um bocadinho emocional finalmente poder ouvir estas histórias da vida dela. O sofrimento, mas também as experiências mais pessoais , que explicavam também a minha vida. Fiquei muito agradecido por ela finalmente ter aberto o seu coração. A minha irmã mais velha [Victoria] sabia tudo, já conhecia estas histórias, mas eu não. A minha mãe nunca me tinha contado, talvez porque eu sou o filho. Sou homem, não sei… Mas finalmente ficámos muito mais próximos por causa disso. 

 

Essa era a minha próxima pergunta: o documentário tornou-os mais próximos? 

Sim.

 

Tinha muito material que ficou de fora do filme? Foi difícil escolher?

Muito. Eu fiz uma entrevista a cada Sábado durante mais de um ano. Tenho ainda muitas entrevistas que não pus no filme. Fiz mais um filmezinho, que está no DVD, que tem para aí meia hora. Tem mais segredos, mais histórias, mesmo para as pessoas que querem conhecer mais da vida da Paula Rego. 

 

Quem sabe pudesse existir uma sequela: “Secrets & stories II” ?

É possível. A BBC pediu-me há pouco tempo um novo filme. Porque a minha mãe tem uma exposição em breve no Tate Modern em Londres. Será uma retrospectiva da obra de Paula Rego de Maio 2020 a Outubro de 2021. Eu ainda não decidi se tenho vontade de o fazer. (risos) É uma obra muito grande, é muito emocional. A mãe está muito mais frágil, e portanto é mais difícil fazer entrevistas com ela. Já não tem a mesma memória...

 

Podia ser um filme de animação...?

Podia! (risos)

 

Why not?

Why not!

 

Por último, quais são alguns dos trabalhos preferidos de Paula Rego e porquê? 

Eu gosto muito da obra “The Pillowman”, um tríptico de 2004. É uma obra sensacional. Incrível. Eu olho sempre para essa obra com uma admiração enorme. É cheia de histórias mas também com uma atmosfera muito estranha. É inspirado numa obra de teatro bastante famosa na Inglaterra. Mas há muitas outras, “O Anjo” (1998) também é uma obra que eu adoro “The Company of Women” (1997), a história do Padre Amaro. E também gosto muito das obras dos anos 60, que são colagens muito diferentes das obras mais recentes, mas que também têm um poder e uma força muito estranha.

"Paula Rego, histórias e segredos", de Nick Willing

26 de Outubro 2019 pelas 19h 

Zeughauskino - Deutsches Historisches Museum
Unter den Linden 2, 10117 Berlin

Versão original (inglês) com legendas em português

Com a presença do realizador, Nick Willing.

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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