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“Não acredito em esperar que as coisas aconteçam” - Aldemar Matias, “La Arrancada”

La Arrancada (c) Aldemar Matias.jpg

19/02/2019

Foto: ©Dublin Films

“La Arrancada”, de Aldemar Matias, fez parte da secção Panorama Dokumente da 69. Berlinale. O realizador é originário de Manaus, capital do estado do Amazonas, e vive actualmente em Barcelona. “Fui fazer um mestrado em Barcelona em 2016, acabei ficando, e estou entre o alívio e a culpa de não estar no Brasil neste momento”, desabafa logo no início da conversa com a Berlinda. Não foi a primeira vez que esteve em Berlim - em 2016 já tinha participado no Berlinale Talent Campus.

 

 

Uma nova geração em Cuba

 

O filme passa-se num país em transição e foca-se numa nova geração de jovens que se confrontam com o contraste entre a tradição e o mundo moderno, ao mesmo tempo que as suas incertezas quanto ao futuro se vão revelando. Jenniffer, que treina para ser atleta, a sua mãe, que trabalha no departamento de desinfecção nacional, e o irmão, que se prepara para deixar o país, são o trio que transporta o público numa viagem familiar complexa desde o arranque inicial - “La arrancada”.

 

“As pessoas perguntam-me muito como vão as coisas em Cuba. Há uma ideia pré-concebida de Cuba, ninguém é indiferente. Ou se odeia ou se adora e se tem o chapelinho do Che Guevara. Há quem pense que ainda se vive em 59, que é horrível”.

 

Aldemar Matias começa por explicar como escolheu as personagens principais “A minha primeira obsessão foi com Marbelis, a mãe de Jenniffer“, referiu o realizador, que já tinha trabalhado com ela em “El Enemigo”, curta sobre o ingrato trabalho de uma funcionária de um centro de fumigação de La Havana. Aldemar Matias acabou por encontrar na sua filha Jenniffer a personagem principal para o seu novo projecto. “A Jenniffer tem o fardo e a missão de se tornar numa atleta, mas não está realmente motivada para o fazer. Se não pode competir, chora e mostra que se importa. Então para mim isto foi algo representativo de como esta geração como que flutua, sendo muito ligada ao país, mas não sabendo muito bem onde ir”.

 

A rodagem do filme seguiu os personagens de forma fluida, um mix de observação e direcção de actores que durou três semanas. Apesar do curto espaço de tempo para trabalhar, não faltou conteúdo: desde a lesão do joelho da personagem principal, às competições, às preparações do irmão para deixar o país. “Tive muita sorte em ter tantos eventos para filmar. Eu não acredito em esperar para que as coisas aconteçam. É muito romântico, mas acho que é como remar para sempre e depois nada acontece. Ao mesmo tempo, é como se eu não quisesse realmente dirigir, mas tinha que o fazer. Então eu acredito que a estratégia certa foi criar as melhores condições para a realidade emergir na câmara. Pelo menos criar encontros e situações onde eu pudesse ter algo para filmar”.

 

 

Uma produção França – Cuba – Brasil

 

“Há dois, três anos, a gente tinha mais otimismo e relação ao audiovisual. Tinha muita política pública focada em estimular as produções regionais e descentralizar um pouco os fundos de São Paulo e Rio.” O realizador explicou o processo de financiamento do documentário, que passou por abrir horizontes e encontrar uma colaboração em França. “Não me parecia certo pegar uma grana regional, que existe para fomentar o desenvolvimento dessa região, e sair filmando fora”, esclarece logo no início da conversa. O filme é inteiramente rodado em La Havana, Cuba, onde o realizador viveu durante dois anos. “Eu continuava muito atraído ao país, queria filmar em Cuba”. Acabou por encontrar um produtor francês no festival de Biarritz que lhe permitiu realizar o filme. “La Arrancada” é, assim, uma produção Brasil, França e Cuba.

 

Aldemar Matias tem a sua própria produtora no Brasil, em Manaus, e foca o seu trabalho na região amazónica. Barcelona é a sua actual casa, mas confessa querer voltar a trabalhar no seu país de origem. “Eu estou lá, gosto de lá, mas claro, tenho muita coisa pra filmar no Brasil. As histórias que eu quero filmar estão lá. É uma distância que eu preciso tomar para chegar e as coisas não estejam estão banalizadas do meu ponto de vista. Uma coisa que já sinto em Cuba, é que às vezes não noto as pequenas coisas extraordinárias do quotidiano porque eu já estou com a vista Cubana”. O realizador preocupa-se com o olhar banalizado das coisas e, ao mesmo tempo, considera importante não estar no Brasil para conseguir ter uma perspectiva fresca quando voltar.

 

 

Racismo, homofobia e política brasileira actual

 

A actual situação política no Brasil não demora a voltar à conversa. O realizador explica que em Barcelona tem uma vida mais tranquila do que no Brasil. “Não vou negar também que, principalmente agora, é mais confortável. Como é que eu vou andar de mão dada com o meu namorado no Brasil de agora?” A questão política no Brasil é uma das preocupações recorrentes do jovem realizador, que se sente muito dividido por viver fora. Contudo, defende que continua a fazer a sua parte “Eu sinto até que a minha missão é um pouco essa, falo muito com as pessoas fora, tento esclarecer bastante. Acho que as lutas são transversais. Participo em movimentos que são contra a homofobia e o machismo, a favor da emigração e contra o racismo, em Barcelona. No final, as bandeiras devem ser essas e não as nacionalistas. As mesmas causas que eu defenderia no Brasil eu estou fazendo fora”.

 

As experiências que tem vivido levam-no constantemente a reflectir sobre as diferentes perspectivas relativas a raça ou classe social. “Se eu estou no condomínio dos meus pais, eu não sou negro. No Brasil o que determina a raça tem muito a ver com a questão do classismo. Em Barcelona eu estou no centro e sou marroquino. A polícia já vem e bota o cachorro pra me cheirar. Então é engraçado estar nessas duas posições de privilégio e entender essas duas posições”. Refere ainda que existe um lado menos glamouroso no seu percurso. ”Não é tão cool assim como soa… estou em Barcelona, filmo em Cuba e no Brasil, tanto que agora em 2019 eu preciso desligar”.

 

“Parente” (2011), “Años de Luz” (2013), “When I get home” (2015) e “El Enemigo” (2015) são alguns dos seus trabalhos anteriores. Desenvolve actualmente um projecto juntamente com a cineasta Maider Fernández no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, que consiste numa série de actividades educativas para fomentar a interacção dos jovens com o museu e o bairro através do audiovisual.  

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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