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"Serpentário", de Carlos Conceição - Entrevista

Serpentario,_Carlos_Conceicao_©_Mirabili

19/02/2019

Foto:  ©Mirabilis

“Um veículo para falar de algo que há muito tempo queria falar” - Carlos Conceição.

“Serpentário”, de Carlos Conceição, estreou na secção Forum da 69. Berlinale, numa noite em que estiveram presentes o realizador, o actor João Arrais e o editor/produtor António Gonçalves. No palco de uma sala esgotada no Berlinale Palast, Carlos Conceição descreveu o processo de rodagem da sua primeira longa-metragem, destacando o momento-chave que o impulsionou: uma conversa com a mãe, que vive em Angola, em que lhe disse querer adoptar uma arara. Como este tipo de ave tem uma enorme longevidade - 85 anos ou mais - perguntou-lhe se estaria disposto a cuidar dela depois de morrer. “Precisava de um estímulo, uma espécie de veículo para falar de algo que há muito tempo queria falar”. Daqui partiu para a construção da narrativa de “Serpentário”, um filme que aborda a busca de identidade e de um sentimento de pertença num cenário de pós-catástrofe. O toque pós-apocalíptico não deixa esconder os elementos históricos relevantes, dos Descobrimentos ao colonialismo e à proclamação de independência do país onde nasceu - tudo sem mencionar as palavras “Angola” ou “Portugal”.

 

O realizador decidiu escolher um actor para contar a história e distanciar-se um pouco da carga autobiográfica. O personagem funciona como uma espécie de reflexo, mas não pretende ser tão fiel. Quanto ao trabalho com João Arrais, actor com quem já tinha colaborado na sua curta "Coelho Mau", Carlos Conceição explicou que “não achei que devia dirigi-lo demasiado, nem criar demasiada semelhança comigo. Acho que até não o dirigi muito. Falávamos antes de rodar as cenas e eu dava-lhe algumas dicas sobre a direcção que queria que elas tomassem e o resto foi trabalho dele”. Elogiou ainda o “incrível domínio da subtileza” de João Arrais, com quem esteve vários meses em Angola em filmagens. Realizador e actor  juntos num verdadeiro trabalho de isolamento e introspecção, sem mais equipa técnica presente.

 

João Arrais participou em filmes como “Mistérios de Lisboa”, de Raúl Ruiz, ou  “As Linhas de Wellington”, de Valeria Sarmiento, e esteve em Berlim em 2016 com “Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira. Sobre as filmagens de “Serpentário” acrescentou “Falámos sobre o filme e sobre a energia que o Carlos queria dar às cenas. Confiei nas decisões dele e quando ele dizia que a cena estava bem, isso era o suficiente para mim”.

 

Busca de identidade e cinema

 

Nascido em Angola, viveu em Portugal alguns anos durante a adolescência, tendo depois voltado para Angola, onde permaneceu até aos 21 anos. Em conversa com a Berlinda, o realizador explicou o seu percurso entre os dois países. “A minha mãe foi fazer o doutoramento em Braga e por isso eu vivi lá dos 12 aos 17 anos, uma época extremamente formativa para nós, em que criamos muitas raízes com o sítio onde vivemos, as pessoas com quem lidamos. Acho que isso contribuiu para que depois o meu regresso a Angola tivesse sido muito mais difícil. Sobretudo porque voltei no auge das consequências da guerra e do reflexo que a guerra teve na cultura – ou na falta dela - nas mentalidades, na economia. Em 97/98 era difícil sair da Europa e voltar a viver lá. Quando regressei a Angola tinha justamente a idade que o João tem neste filme, o fim da tal época formativa”.

O fascínio pelo cinema vem desde pequeno. “Desde criança sempre tive vontade de fazer cinema. Brincava com a ideia de fazer filmes. Interessei-me muito e comecei a escrever “short stories”. Antes de cinema estudei literatura“. Em 2002 foi para a Escola de Cinema de Lisboa. “Não tinha intenção de voltar para Angola nessa fase”, confessa. Realizou a sua primeira curta em 2010, “Carne”, distinguida no Indie Lisboa com o prémio Novos Talentos. Seguiram-se “O Inferno” (2011), “Versailles” (2013),  “Boa Noite Cinderela” (2014) e “Coelho Mau” (2017). Já passou pelo Festival de Cinema de Locarno e Cannes.

 

“Serpentário” trouxe-o agora a Berlim. O filme vai buscar vários aspectos do percurso de vida do realizador, que pertence a uma geração que ficou num limbo de identidade após a guerra em Angola – lá não era considerado angolano mas português. Em Portugal tratavam-no como angolano e não português e isso marcou profundamente aquele período da sua vida. “Durante algum tempo não me senti português, sobretudo no secundário. A burocracia foi de tal maneira difícil, não me deram nacionalidade até aos 21 anos. Não é preciso nascer em Portugal para ser português”. Carlos Conceição vive em Portugal, mas todos os anos vai a Angola para ver a mãe.  

 

Curtas e longas

 

Esta não foi a primeira vez que esteve em Berlim. Deixa escapar, por entre risos: “acho uma cidade muito fria“. Em 2013 estive no Talent Campus “Foi muito divertido. Tivemos muitos workshops, mas é uma coisa bem à parte. Gosto de cá estar e este festival é extremamente importante. Fui duas vezes com filmes meus ao Festival de Cannes e sinto-me muito bem lá. Agora este festival tem outra proposta, uma coisa um bocadinho menos para as convenções e mais para o cinéma de recherche, aquelas coisas mais diferentes”.

 

“Serpentário” assinala o momento de mudança de registo de curta para longa-metragem. “Surge num momento em que eu estava um bocadinho cansado de trabalhar em formatos curtos, que eu acho muito mais difícil. Tens que escolher só o essencial, é como fazer é um Haiku – como é que consegues transmitir uma ideia em três frases? O que me aconteceu foi que as minhas curtas nunca me permitiram a exploração visual, porque todos os planos tinham que cumprir uma função narrativa. Esta foi uma oportunidade de fazer um filme cujo desenvolvimento tivesse um ritmo correcto – emocionalmente falando – mas sobretudo, pela primeira vez, uma ideia que era fazível com a falta de meios que eu tinha; se calhar até com menos dinheiro que uma curta metragem inclusivamente”.

 

Carlos Conceição abraçou então a possibilidade de experimentar algo diferente. “O que me pareceu foi: este filme só é fazível se eu sair completamente de dentro dos meus credos estéticos e fizer algo que não tem nada a ver com aquilo que eu achava que ia fazer no futuro, mas que é a única maneira de fazer com que o filme exista. É quase como se fosse um ensaio caseiro, um trabalho de introspecção que eu depois resolvo partilhar. O lado de ficção científica e de fábula para mim é mais importante do que a parte autobiográfica“. Curiosamente o feedback que reconhece ter recebido é mais sobre a parte pessoal e a questão política e geográfica. E também sobre o colonialismo.  

 

Colonialismo e História

 

No final da projecção do filme na noite de estreia, alguém no público criticou a referência à forma pouco rigorosa - ou talvez um pouco primitiva - como os africanos eram retratados. O realizador afirmou que não procurou focar-se numa tentativa de retrato do povo africano, mas admite que esta pode ser uma fonte de críticas a “Serpentário”. De forma tranquila, corroborou na conversa com a Berlinda: “Eu sei o filme que fiz, estou contente com o que consegui. O consenso é uma coisa muito difícil - e perigosa inclusivamente. Não me interessa encontrar consenso. Portanto, vai sempre haver alguém que faça esse género de observação do filme”.

Refere a cena da tribo, onde se vê um grupo de pessoas a conversar de forma efusiva, e explica: "Não mudei o guarda-roupa deles, não os dirigi em rigorosamente nada. Eles estão exactamente como vivem e os diálogos que estão a ter são integralmente tirados de livros de História. É História, não tem a ver com manipulação nem retratos de comunidades africanas”.

 

“Serpentário” vive de alegorias e da utilização de metáforas para contar uma história real. “O que eu acho é que é preciso as pessoas não perderem o sentido de alegoria. Ultimamente vejo imensas pessoas, até pessoas que trabalham no cinema, que olham para uma alegoria e não a compreendem. Acham que todas as leituras têm que ser superficiais e são incapazes de perceber a ironia, de desconstruir uma metáfora”.

Filmar em Angola

 

Para o seu próximo projecto, “Flores Abomináveis”, Carlos Conceição prepara nova viagem à sua casa em África. “Não sei se esse será o título definitivo”, diz à Berlinda. No entanto, João Arrais como protagonista é uma certeza.

 

“Já voltei a filmar em Angola depois deste filme e em breve poderei voltar a filmar ainda, mas desta vez numa produção como deve ser – com apoio. À partida terei uma longa-metragem para rodar em Angola com a Terratreme, espero eu que no início de 2020". Vai ser filmada também com a natureza como pano de fundo e “num sítio bem remoto”, avançou.

 

A conversa não podia deixar de referir a produção de cinema em Angola. “Tanto quanto sei é inexistente” afirma peremptório. ”Ouço falar de alguns realizadores angolanos, que parece que existem só assim em nome, são umas lendas. Mas depois os filmes não se encontram. Há o Zézé Gamboa, de quem eu vi o filme “O Herói”, que acho muito interessante. Mas não conheço muita gente mais e eu sou uma pessoa atenta e informada, com curiosidade em relação ao cinema angolano”.

 

Quanto ao futuro do cinema naquele país, confessa-se positivo e esperançoso, apontando o problema da fraca aposta na internacionalização: “Sei de pessoas que vivem em Angola e que querem trabalhar em cinema e que querem fazer coisas. Penso que se calhar vivem um bocadinho em nicho e não pensam suficientemente na internacionalização. Ou seja, provavelmente são capazes de fazer filmes, depois projectam-no num cinema em Luanda e o filme não se internacionaliza. Portanto, para o mundo inteiro é como se não existisse, o que é pena”.

 

A julgar pela carreira de Carlos Conceição até este momento, o cinema angolano tem nele uma forte promessa - e o cinema Português também.

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Rita Guerreiro

Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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