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Encontro no S-Bahn – Teolinda Gersão
Foto: Berliner S-Bahn. © Berlinda
Quando fui estudar para Berlim percebi que aquela cidade não me pertencia, e que lá as regras eram outras. Por vezes, curiosas. Como por exemplo quando a dona da casa onde eu estava hospedada me dizia que o édredon da minha cama devia ser dobrado e arrumado no armário do corredor com uma determinada parte voltada para cima, sem me dar para isso uma razão plausível.
Ou quando o marido dela, se eu lhe pedia qualquer informação sobre um itinerário, parecia preocupado com a possibilidade de não ser exaustivo e de, no meio do caminho, eu precisar ainda de perguntar alguma coisa a quem passasse. “Não precisa de perguntar a mais ninguém”, avisava.
Concluí que dirigir-se a qualquer pessoa, acidentalmente, devia ser considerado inconveniente ou embaraçoso. No entanto, nos primeiros tempos, para além dos donos da casa, com quem não me apetecia falar, os desconhecidos eram a minha única hipótese de trocar algumas palavras com outro ser da minha espécie, mesmo que fosse só para perguntar onde ficava uma rua.
A facilidade de falar com desconhecidos, ou mesmo a facilidade de falar, não era característica da população. Por vezes interroguei-me se também falariam com dificuldade até com conhecidos e amigos (estabeleciam aliás uma diferença verdadeiramente abissal entre amigos e meros conhecidos). Não havia, portanto, o hábito natural de dirigirmos a palavra uns aos outros. Um colega de seminário a quem um dia eu disse: “Está frio!” convidou-me a conhecer a mulher dele, porque achou que iríamos encontrar um sem-número de temas de conversa. A mulher dele – informou-me – era tailandesa.
Os alemães, portanto, conversavam pouco. Não ficavam, como nós, sentados nas esplanadas cavaqueando, e depois dos espectáculos a cidade tornava-se mais ou menos deserta porque, ao contrário de nós, não viviam pela noite dentro.
Claro que depois conheci alemães diferentes. Descobri pessoas individualmente fascinantes, embora no conjunto a sociedade me parecesse desoladora e a vida incrivelmente aborrecida. Aquele não era, de certeza, o meu lugar, apesar das universidades, teatros e concertos. Os estrangeiros eram vistos como intrusos, e a sociedade não desejava integrar-nos. Daí que nos votasse à indiferença mais completa. Mas aquilo de que nos excluíam também não me parecia que valesse a pena desejar.
Nos primeiros tempos, antes de conhecer um número razoável de estrangeiros e depois, a pouco e pouco, um número pequeno mas compensador de nativos de quem fiquei amiga (em alguns casos, como depois se verificou, durante décadas), a criatura mais próxima de mim era um camelo deitado na neve, que eu via através das grades do Jardim Zoológico, quando passava na rua, e que estava como eu fora do seu habitat. Tal como o camelo, eu tinha queixas, desde logo contra a neve, os dias cinzentos e as temperaturas negativas.
Embora as casas fossem acolhedoras e quentes e ainda hoje eu associe o termo “gemütlich” (para os alemães provavelmente tão antiquado e irritante como para nós “saudade”) a lareiras acesas, uma profusão de tapetes, alguns cobrindo outros parcialmente, paredes forradas de livros, música de Bach e vinho aquecido.
Mas nada disso vem ao caso. Eu estava a falar dos meus primeiros tempos na cidade e da minha dificuldade em viver nela.
Aconteceu por exemplo, logo numa das primeiras noites, esquecer-me da chave, ao regressar de um concerto. Tive de tocar à campainha e fazer levantar a dona da casa porque, como verifiquei, toda a gente se deitava cedo. O meu esclarecimento, de que me aliás a pressei a pedir desculpas, foi sentido como um imperdoável terceiro-mundismo, e senti que deixava muito mal colocado o meu país. Percebi que era próprio dos alemães, e em geral das sociedades avançadas, cumprirem à risca todas as obrigações, e nunca se esquecerem de nada.
Na semana seguinte o dono da casa disse-me que, se eu usasse o S-Bahn, entrasse numa carruagem onde viajassem mais pessoas, ou então na primeira, junto do maquinista. Perguntei porquê, mas em vez de responder à pergunta ele deu-me uma informação de ordem geral: as pessoas de Berlim oeste boicotavam o S-Bahn, apesar de ser barato, porque era explorado pelo lado leste. A conversa ficou por aí. Deduzi que provavelmente era suposto também eu boicotar o S-Bahn. Mas eu não estava interessada em boicotar o lado leste da cidade. O lado leste, pelo contrário, atraía-me, porque o comunismo era na altura proibido no meu país. Por isso eu ia com frequência ao “outro lado”, para ver como era e o que me proibiam, e para isso utilizava o S-Bahn, espécie de metro de superfície, com incómodos bancos de madeira.
Na verdade o que eu via do “outro lado” não me entusiasmava nem um pouco. Havia uma sensação geral de opressão e pobreza, polícias por todo o lado, ameaçando que não era permitido fotografar isto nem aquilo, este edifício nem aquele, a arquitectura moderna era incrivelmente feia e a construção de péssima qualidade, as pessoas eram cinzentas e caladas, às vezes pediam cigarros, esferográficas ou outras coisas banais, que aparentemente não tinham.
E havia, é claro, o muro. Daquele lado vivia-se, de algum modo, com o muro às costas e ele tinha o peso do mundo. Havia também, obviamente, histórias de quem tentava atravessá-lo. Mais tarde ouvi algumas. Mas daquele lado não as contavam, como se tivessem medo. A sensação forte era de medo e insegurança. Qualquer um podia ser denunciante. Isso eu também conhecia, no meu país, a que naquela época voltara as costas. Concluí que todas as ditaduras se pareciam e o meu interesse pelo lado leste começou a limitar-se cada vez mais às peças de Brecht do Berliner Ensemble e aos museus.
No entanto não consegui alhear-me de outros aspectos, mesmo que quisesse. Aquela não era uma cidade normal, estava partida ao meio. Respirava-se com dificuldade, sobretudo num dos lados.
Na verdade, eu respirava com dificuldade em ambos. O lado oeste também não me parecia um bom exemplo de sociedade nem de vida. Pelo menos não era nada disso o que eu desejava para o meu país. Mas na altura não tinha de preocupar-me com grandes questões como essa. Já me dava trabalho suficiente a pequena questão de viver, no dia-a-dia.
De facto não era fácil, porque eu me distraía e baralhava as normas. Por exemplo, dobrava o édredon do lado errado, e tornei a sair à noite e a esquecer-me da chave.
Dessa vez tinha ido ao teatro com Jean-Pierre, um francês nascido em Port-au-Prince, que estudava arqueologia. Separámo-nos na estação do Zoo e seguimos no metro em direcções diferentes. Em Berlim em geral era esse o uso, os rapazes com quem saíamos não nos acompanhavam depois até casa, se moravam longe, porque não teriam depois eles próprios transporte, uma vez que o metro acabava cedo. Mas eu não me importava de regressar sozinha. Berlim parecia-me seguro, e além disso eu assumia que fazia parte da emancipação das mulheres desembaraçarem-se por si, em lugar de se tornarem um estorvo.
No entanto, quando dei por falta da chave, lamentei que Jean-Pierre não estivesse comigo. Não queria acordar outra vez a dona da casa, mas não tinha dinheiro para ficar num hotel. Não podia pernoitar numa estação de metro, porque fechavam cedo. Ele poderia ter dinheiro para um hotel e emprestar-mo; ou então deixar-me ficar no quarto dele, por uma noite, não me importaria de dormir no chão, qualquer solução servia, desde que não tivesse de passar outra vez pela humilhação de acordar a dona da casa. Essa era de facto a última coisa que eu queria. Mas não sabia onde Jean-Pierre morava, nem tinha o seu telefone. Estava sozinha.
O S- Bahn, lembrei-me de repente. Circulava toda a noite, entre os dois extremos da cidade. Podia passar a noite no S-Bahn.
Entrei na primeira carruagem que parou à minha frente. Ia razoavelmente cheia, com pessoas que provavelmente voltavam como eu de teatros e concertos. Encontrei lugar num dos bancos, do lado da janela. Recostei-me o melhor que pude e adormeci.
Acordei de repente, com uma voz que dizia qualquer coisa. Um homem sentara-se no banco em frente ao meu. Provavelmente fora ele que falara.
- O que é que você está aqui a fazer? Perguntou com veemência, como se eu fosse surda.
Deve ser doido, pensei olhando em volta e reparando que a carruagem se tinha esvaziado entretanto. Eu tinha tanto direito como ele a estar ali, uma vez que pagara o meu bilhete. Não tinha que dar justificações a ninguém.
Não respondi, disposta a ignorá-lo.
Mas não era possível ignorá-lo. Ele olhava-me com ar inquisidor, à espera que eu respondesse, como se fosse dono daquele espaço e o policiasse por conta própria.
Pareceu-me prudente não desafiar um doido, àquela hora da noite, num comboio vazio. Ele sentia o meu silêncio como uma provocação. Mas nenhuma resposta me ocorria, além da verdadeira.
- Esqueci-me da chave e não quero acordar os donos da casa, disse finalmente, enfureci-me de imediato contra mim própria. A verdade soava absurda, inverossímil. Sobretudo contada daquele modo, a um desconhecido.
- De que país vem? Perguntou-me de imediato, com rispidez. Notara, portanto, o meu sotaque estrangeiro.
- Portugal, respondi, também com brusquidão. E para abreviar e não repetir o diálogo que tivera com os donos da casa, acrescentei logo a seguir: Não é o mesmo que Espanha. Fica ao lado.
Ele pareceu duvidar, o que não me surpreendeu. Ninguém na Alemanha parecia admitir que Portugal existia. Pelo menos, como às vezes diziam, não era para eles “um conceito”. O que equivalia a dizer que não vinha no mapa, ou pelo menos não no seu mapa cultural e mental. Obviamente não por ignorância deles, achavam, mas por insignificância nossa.
- Portugal? Repetiu com agressividade. Não acreditava, portanto, no país, ou não acreditava em mim. E o que é que faz na Alemanha?
O interrogatório, por conseguinte, continuava. Eu aceitava, estupidamente, ser interrogada. Aquele homem humilhava-me, como se eu não tivesse direito a sair à noite nem a usar o S-Bahn, como se não pertencesse à sociedade, não tivesse passaporte nem houvesse leis a proteger-me. Eu não era obrigada a responder-lhe, mas respondia.
- Estudo, disse, cada vez mais irritada com ele e comigo.
O que queria ele? Roubar-me? Podia ter-me levado a carteira enquanto eu dormia. Violar-me, matar-me?
De repente alguma coisa soou na minha cabeça e senti-me em perigo. Eu estava inteiramente à mercê dele. À mercê de um louco. Poderia atacar-me, a qualquer momento, e ninguém viria em meu socorro. Não adiantava sair na estação seguinte porque ele iria atrás de mim, e as estações vazias, àquela hora, não eram mais seguras.
- Tenho uma bolsa alemã para estudar em Berlim, acrescentei com ar sobranceiro. Para que ele soubesse que, se ousasse alguma coisa contra a minha pessoa, haveria uma instituição alemã a preocupar-se comigo, e a accionar leis alemãs em meu favor. O que de nada me serviria, pensei ainda, se estivesse morta.
Ele não dizia nada, olhava-me apenas. Achei que o silêncio era muito pior do que as palavras. Falar podia, por isso, servir-me de defesa. Enquanto eu falasse e lhe contasse histórias, adiava o momento seguinte, em que qualquer outra coisa podia acontecer.
- Não me pergunta o que é que estudo? Perguntei por minha vez, e pareceu-me que, apesar do medo, alguma ironia escapara na minha voz, involuntariamente, porque perguntar “o que é que estuda?” era um estereótipo obrigatório nas conversas.
Mas essa pergunta não lhe interessou de todo. Ele estava completamente fora dos estereótipos e das normas dos nativos, o que o tornava tanto mais imprevisível.
- Esqueceu-se da chave, repetiu como se reflectisse, pesando as palavras que me tinha ouvido e recuando para um momento anterior da conversa.
- É, assenti, porque agora me parecia cada vez mais urgente não parar de falar. Esqueci-me da chave.
Ele olhava-me, com um rosto sem expressão. Podia ter trinta e muitos, quarenta anos. Talvez menos. Usava óculos e o cabelo arruivado começava a rarear-lhe. Vestia um anorak castanho.
- É aliás a segunda vez que me esqueço da chave, continuei. Estou a fazer horas para que amanheça.
E como ele continuava parado e os seus olhos inexpressivos me assustavam, prossegui, como se lhe contasse outra história para ganhar tempo:
- A dona da casa reagiu muito mal da primeira vez. Não quero voltar a acordá-la.
O homem olhou lá para fora, para a estação onde o comboio parara.
Disparou nova pergunta, rápida, incisiva, como se atirasse uma pedra e me acertasse:
- Há quanto tempo está em Berlim?
Neste momento entraram dois bêbados em algazarra e o homem saiu.
Os bêbados sentaram-se num banco próximo. Cantavam e riam em voz cada vez mais alta, por vezes lançando olhares na minha direcção.
Senti-me inquieta e saí na estação seguinte. Não queria ter de enfrentar mais ninguém, naquela noite.
Comecei a caminhar, sem ter a menor ideia onde me encontrava. Não se via vivalma na rua nem passavam carros e havia um frio cortante, que talvez anunciasse um nevão. Não trazia relógio e não imaginava que horas seriam. Ainda era noite, de qualquer modo, e estava escuro, apesar de haver alguns candeeiros acesos. Por vezes tive a sensação de ouvir passos atrás de mim. Pensei que podia ser o homem do S-Bahn e voltei bruscamente a cabeça. Afinal ele saíra apenas uma paragem antes. No entanto, não vi ninguém. Tapei a cabeça e quase toda a cara com o cachecol e continuei a caminhar. Apenas deixei uma fresta, no lugar dos olhos. Menos por frio do que por medo. Escondia a cara para não ser reconhecida.
Caminhei muito tempo, morta de cansaço. O cansaço aumentava o medo, pensei. Provavelmente, eu exagerava. O mundo não era tão perigoso assim, Berlim devia ser mais seguro do que agora me parecia.
Caminhava sem saber para onde, avançando numa direcção ao acaso, só porque não podia estar parada. Estava demasiado frio, e o medo aumentava, se parasse.
Finalmente o céu ficou mais claro e começaram a aparecer vultos e alguns carros na rua. Na esquina seguinte, dois homens descarregavam jornais. Perguntei-lhes se havia por perto uma estação de metro.
À direita e depois sempre em frente, disse um deles.
Agora era mais fácil, pensei com alívio. O objectivo era chegar ao metro. Devo ter caminhado meia hora ou mais, doíam-me os pés e estava gelada, um bafo branco saía-me da boca porque o ar ficava cada vez mais frio.
Quando cheguei à estação, ainda a encontrei fechada. Sentei-me nos degraus à espera, até que dois funcionários vieram abrir os portões. Desci a escada agarrada ao corrimão, pondo sempre os dois pés no mesmo degrau, um depois do outro. Tinha medo de cair, se os pés falhassem, e o frio tinha-os tornado insensíveis.
Em baixo havia calor, aquele bafo morno do metro que era o cobertor dos vagabundos. Sentei-me num banco à espera do primeiro comboio, apressei-me a entrar quando ele chegou e uma porta se abriu à minha frente. Estava em segurança, agora, dentro em pouco chegaria a casa. Mas sentia-me demasiado cansada para me regozijar com essa ideia, ou qualquer outra.
Duas semanas depois, a meio do Kurfürstendamm, parei, como costumava, numa banca de jornais, e de repente vi numa foto alguém que reconheci.
Comprei o jornal e li a notícia ali mesmo: Tinha sido finalmente apanhado o assassino sexual que estrangulara três jovens prostitutas no S-Bahn e estava a ser perseguido havia vários meses.
Li uma vez e outra, sem poder despregar os olhos da fotografia. Sim, era ele, o homem que me tinha interrogado naquela noite. Sem sombra de dúvida, era ele: o mesmo rosto, os óculos, o cabelo rareando, o anorak. Olhava em frente, na fotografia, como se olhasse para mim.
Texto: Teolinda Gersão
O conto „Encontro no S-Bahn“ insere-se na colectânea “A mulher que prendeu a chuva”, de Teolinda Gersão, publicada pelas editoras Sudoeste Editora, 2007, e Sextante, 2007. Encontra-se traduzido para inglês na revista „The Threepenny Review“ nº126, Berkeley, Verão de 2011.
Teolinda Gersão
(Coimbra, 1940) é uma escritora e professora universitária portuguesa. Estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995. A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.