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“Que Horas Ela Volta?”, um filme sobre educação e relações humanas | Berlinale 2015
Foto: Camila Márdila, Regina Casé em "Que horas ela volta?". © Aline Arruda, Gullane Filmes
Há filmes que tocam em temáticas “adormecidas”, incómodas (para alguns) e que nos fazem pensar. ”Que Horas Ela Volta?” encaixa-se nessa categoria. A longa metragem conta a história de Val (Regina Casé) que se vê obrigada a deixar a filha Jéssica (Camila Márdila) no interior de Pernambuco para passar 13 anos como babá do menino Fabinho (Michael Joelsas), em São Paulo. Ao longo dos anos, Val consegue estabilidade financeira mas convive com a culpa de não ter criado a sua própria filha. Além de ser responsável por todas as tarefas da casa (e da vida) dos patrões, Val desenvolve uma relação de grande afetividade e carinho com Fabinho, como se fosse a sua segunda mãe.
Nas vésperas da época de exames do menino, Val recebe um telefonema da filha que revela vontade de ir para junto da mãe e de estudar na faculdade. A empregada, que conta com o apoio dos patrões, recebe a notícia com alegria mas fica apreensiva por chegar a altura de, finalmente, reencontrar a filha. Contudo, quando a jovem entra em ação, apercebe-se da atitude subserviente da mãe perante os patrões e revolta-se ainda mais. Jéssica não é o que esperavam e todos acabam por ser afetados pela sua personalidade e honestidade. Val fica no meio de uma situação complicada e com o desafio de encontrar um novo rumo para a sua vida.
A casa dos patrões é o espaço por excelência de todas as cenas e o primeiro símbolo da diferença entre patrão e empregado: a zona nobre da moradia distingue-se da cozinha e do “quarto dos fundos” reservado para a empregada. Os limites entre estes dois espaços deixam perceber as fronteiras entre os dois mundos e põe em questão as relações de poder (autoridade/submissão).
Revela-se assim uma realidade que leva à reflexão sobre o trabalho destas mulheres, que acabam por dar o seu amor aos filhos/famílias dos outros para conseguirem melhores condições de vida para os seus. Esta é uma problemática sensível no Brasil, espelhada na interpretação brilhante de Regina Casé. Val é uma personagem querida (figuras a que, de resto, a atriz já nos habituou) que retrata, na perfeição, o dia a dia e as problemáticas destas babás. A jovem atriz Camila Márdila é a heroína, a personagem que mexe com o enredo, apropriando-se do espaço físico e psicológico da casa/família. Não é por isso de estranhar que as duas atrizes tenham sido distinguidas no Festival Internacional de Sundance (Estados Unidos da América) com o prémio especial do júri na categoria de atuação. Em Berlim, para já, tem recebido muitos aplausos e críticas positivas.
Leia, de seguida, as principais ideias e mensagens deixadas pela realizadora Anna Muylaert, pela atriz Camila Márdila e pelo produtor Fabiano Gullane na conferência de imprensa da Berlinale 2015.
“No Brasil, a maioria das famílias de classe média tem uma babá e, na minha opinião, o trabalho destas mulheres é desconsiderado. Este filme é sobre a arquitetura dos afetos (a arquitetura simboliza a divisão do espaço e das classes). Abordamos uma questão social dura e que é preciso pensar. O personagem da Jéssica foi o que demorou mais a finalizar. Inicialmente pensei que ela seria o que se esperava (uma menina fraca, filha da empregada, facilmente abusada e que seguiria os passos da mãe), mas numa fase final decidi que ela teria de ter outro rumo e de ser uma personagem além do real. Eu nasci numa família de classe média e levei muito tempo a ver esta classe do outro lado, do lado de lá da cozinha onde ficava a babá. Na escola, quando me pediam para desenhar a minha família, eu nunca sabia se deveria desenhar a empregada e isso me confundia desde pequena. A minha babá é muito importante para mim e para a minha família e é a musa inspiradora deste filme. Acho que o principal problema do Brasil (que tem uma herança escravagista) é a educação, mas hoje o povo está melhor, tem mais “direito de ser”, mas muita coisa tem de mudar. Faltava um filme que falasse deste tema com respeito e não com humor e gozação. Há pessoas que vão odiar o filme (aquelas para quem a verdade não é conveniente), mas não me importo: o importante é estarmos discutindo o tema.”, Anna Muylaert
“Quando eu li o roteiro, percebi logo que a Jéssica tinha muita vida. Acho que a personagem é uma heroína porque faz surgir questões que estão num lugar acomodado das questões sociais do Brasil (relações familiares e de trabalho) e isso mexe muito com as estruturas das relações. A minha personagem fica triste e revoltada quando percebe que a mãe ainda vive numa situação com a herança escravagista. A minha geração está a tentar ter outro papel. Tem pouco tempo que o trabalho das empregadas domésticas foi regularizado e que as jovens de camada mais baixas podem frequentar boas universidades. Tenho sorte por já ser desta geração.”, Camila Márdila
“Já temos uma longa história com a Anna e já tínhamos feitos outros projetos dela. “Que Horas Ela Volta?”, é um filme que trata um tema de relevância. Para nós é uma alegria ter feito mais este projeto. Estamos muito felizes pelo caminho que o projeto está a tomar. Até agora o filme está a ser muito bem recebido, o que nos deixa satisfeitos e felizes. A maior dificuldade foi conseguir gravar com a Regina Casé porque ela é uma atriz muito querida no Brasil e muito requisitada, mas tudo acabou por correr bem. Sobre a promoção, estamos a trabalhar para que seja garantido que todas as empregadas (babás) tenham a oportunidade de assistir ao filme e, no fundo, se ver.”, Fabiano Gullane
Exibições:
Terça-feira, 10 de fevereiro de 2015, 19h30: Zoo Palast 2 (E)
Sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015, 20h00: CinemaxX 7 (E)

Fabiana Bravo
Nasceu na ilha Terceira, Açores, em 1987. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Técnica e Mestre em Novos Media e Práticas Web pela Universidade Nova de Lisboa, vive e trabalha em Berlim desde maio de 2014.