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Dê aos seus filhos um passado melhor – José Eduardo Agualusa

Foto (da direita para a esquerda): José Eduardo Agualusa e o seu tradutor alemão Michael Kegler, no Festival BERLINDA 2012, em Berlim. © Berlinda.org

Crónica de José Eduardo Agualusa, passada em Berlim.

Achei-o logo improvável. Era albino – tão albino que ofuscava. Suponho que fosse o albino de um albino. A carapinha, cortada rente, irradiava em redor da larga cabeça de peixe-boi uma aura miraculosa. Gordo, sem ser flácido, tinha umas mãozinhas de viúva, ternas e minúsculas, que volteavam à toa, autónomas, enquanto falava. Os olhos espreitavam-me à traição. Quero dizer, um dos olhos fixava-se numa porta, o outro na porta oposta, mas na realidade, como depressa descobri, era para mim que ambos olhavam. A pele do pescoço, rugosa, áspera, purpurina, lembrava a de um paquiderme. Nu, inteiramente nu, arriscava-se a ser confundido com um elefante cor-de-rosa. Talvez por isso se vestisse de forma tão pesada. Mesmo ali, no Chega de Saudade, um dos mais animados bares do Mitte, entre jovens alemães tropicalizados e alguns genuínos capoeiristas baianos, mesmo ali, dizia, quase sufocava, enfiado num fato azul escuro, gravata às riscas, fino sapato de laca. Sentado ao seu lado estava um tipo sombrio. Foi este quem me chamou:

“Só me lembro muito vagamente”, disse-me, declamando, com a voz luminosa, a dicção perfeita de Caetano Veloso: “Correndo você vinha quando de repente, seu sorriso, que era muito branco, me encontrou.”

Achei que estivesse bêbado. O albino soltou uma sonora gargalhada:

“Não se iluda”, preveniu. “O meu amigo é alemão. Não entende uma única palavra de português. Mas conhece de cor todas os sucessos da bossa nova…”

Apontou uma cadeira e convidou-me a sentar. Disse que era angolano. Explicou que conhecera o outro quinze anos antes, quando estudava economia socialista em Berlim, na extinta República Democrática Alemã. Suspirou:

“Aqui onde estamos agora, neste bairro, não havia nada”. Suspirou mais profundamente e eu percebi que tinha saudades desse tempo: “era só escuridão!”

Esta saudade perversa da escuridão encontra-se mais disseminada do que se possa pensar entre os alemães provenientes da Alemanha comunista. Falámos sobre isso. O albino disse-me que havia regressado a Luanda dois anos após a queda do muro. Lamentámos as agruras da pátria. Finalmente, perguntei-lhe o que fazia em Angola. Ele estendeu-me um cartão de visitas. Li:

Prodígio Cláudio

Dê aos seus filhos um passado melhor

“Estou no ramo do passado”, disse-me muito sério. “O passado, pelo menos em Angola, é um negócio com futuro.”

Eu estava perplexo:

“Você é historiador?”

“Historiador? Não, não, eu não estudo o passado. Vendo-o…”

“Como?!”

“Sim, sim, mais-velho, vendo-o. Os meus clientes são pessoas com dinheiro. Eles têm o futuro assegurado, o que lhes falta é o passado. Qual é a coisa que um novo rico mais ambiciona?”

Fez a pergunta e olhou atentamente para ambas as portas. Isto é, olhou para mim, à espera de uma resposta. É difícil conversar com alguém que parece estar a olhar para duas direcções diferentes ao mesmo tempo, enquanto na verdade nos estuda. Isso, as mãozinhas esvoaçantes, a claridade impossível daquele rosto, tudo me afligia.

“O quê?”

“Ser um rico antigo, mais-velho. Ter nascido em berço de ouro. Ter pergaminhos…”

O alemão interrompeu-o:

“A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho”, disse. “Para fazer a fantasia de rei, ou de pirata, ou jardineira. E tudo se acabar na quarta feira.”

Prodígio Cláudio ignorou-o:

“Vendo aos meus clientes um passado novinho em folha. Traço-lhes a árvore genealógica. Dou-lhes as fotografias dos avôs e bisavôs, gente finíssima, junto com a respectiva biografia. Não deixo nada ao acaso.”

Contou que só uma vez tivera problemas, depois de vender a um general – sujeito de origem muito humilde, que enriquecera traficando diamantes –, um retrato a óleo de Frederick Douglass. Com a sua farta cabeleira branca, porte aristocrático, o famoso herói afro-americano, tornado célebre no século XIX pelos vigorosos discursos contra a escravatura, deu um belo bisavô luandense. Um dia, no entanto, o general recebeu a visita de um empresário americano.

“Esse”, disse, orgulhoso, apontando o retrato, “era o meu bisavô. Foi um rico comerciante de escravos.”

Prodígio riu ao lembrar o caso:

“O americano zangou-se com o meu general e eu quase levei um tiro!”

O alemão aproveitou o silêncio para erguer o copo:

“Chega de saudade”, proclamou. “A realidade é que não há paz, não há beleza. É só tristeza e a melancolia que não sai de mim. Não sai de mim, não sai.”

Para alguém que não entendia uma palavra de português ele acertava quase sempre.

José Eduardo Agualusa

Artigo originalmente publicado no Jornal PÚBLICO (Portugal).

 

 

  

 
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José Eduardo Agualusa

José Eduardo Agualusa é jornalista, escritor e editor.

Nasceu em Angola e tem ascendência portuguesa e brasileira. Vive tripartido entre Angola, Lisboa e Brasil. Tem publicados vários romances, vários volumes de contos e um livro de poesia. Viveu em Berlim entre 2000 e 2001. Nesta cidade escreveu duas crónicas que retratam a sua experiência berlinense. Uma delas – “Dê aos seus filhos um passado melhor” – serviu de base para o romance “O Vendedor de Passados”.

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