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Viver em Berlim: mudança e gentrificação

A rápida subida das rendas das casas em Berlim é um fenómeno que faz correr ainda muita tinta. Cristina, Luís e Marta contam-nos por experiência própria as mudanças que notam na cidade com o passar dos anos.

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Fotos: © Berlinda.org (esquerda)  

© Marta Setúbal (direita)

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Rita Guerreiro

Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), participou em vários projectos de voluntariado na cidade e iniciou o Shortcutz Berlin em 2011 com Humberto Rocha, Juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas.

A definição do dicionário é clara: gentrificar é proceder à valorização imobiliária de uma determinada zona urbana por forma a torná-la mais atraente para residentes com maior poder económico. Em Berlim, há pelo menos uma década que a palavra anda nas bocas dos seus residentes. A capital alemã já passou por várias transformações ao longo da história, e esta é mais uma etapa de mudança profunda. 

MUDAM-SE OS TEMPOS

Cristina Aibéo trabalha num Laboratório de Investigação dos Museus de Berlim e recorda que, até ao ano de 2012, não se notava uma subida acentuada dos preços das casas. “Felizmente decidi procurar o meu próprio apartamento nessa altura. Nos últimos dois/três anos, os preços subiram muito, apesar das políticas que tentam travar essa subida. Enquanto não havia muita procura, os preços foram-se mantendo, mas agora é quase tão difícil encontrar casa como em Munique.”

Natural da Covilhã, Cristina vive em Berlim desde 2009 e a sua primeira casa era perto de Alexanderplatz, no centro da cidade, um Plattenbau (edifício feito de materiais de cimento pré-fabricados), onde viviam muitas pessoas idosas desde a sua construção nos anos 50. Cristina lembra-se de alguns desabafos dos seus vizinhos “Em 2010 ou 2011, uma vizinha contou-me que tinha que se ir embora para os arredores de Berlim porque lhe tinham aumentado a renda e ela já não podia pagar. Tinha uns 70-80 anos e vivia ali há 40 anos. Fiquei muito triste e em parte senti-me culpada. Afinal das contas, apesar de eu ganhar mal (1000€ na altura), provavelmente podia pagar mais do que ela. Já na altura se começava a falar muito de gentrificação”.

Mas será a gentrificação um fenómeno assim tão estranho? Ou estranho é uma cidade como Berlim, a capital da Alemanha, ser tão barata em comparação com outras capitais europeias? Dúvidas houvesse, essa gentrificação continua até hoje, e já com novos atores em cena, como conta Cristina: “Hoje em dia já se fala na gentrificação dos gentrificadores. Em Prenzlauerberg, por exemplo, os Berlinenses foram "gentrificados" por alemães do sul, que são mais ricos. Hoje estes estão a ser "gentrificados" por estrangeiros que vêm trabalhar para start-ups. Quando eu vim morar para Friedrichshain, o bairro ainda era bastante tranquilo. Já tinha muitos cafés e bares, mas não era tão "alternativo" ou "artístico" como Kreuzberg, nem tão chique como Prenzlauerberg. Entretanto, as antigas lojas de quinquilharias deram lugar a cabeleireiros super chiques ou a lojas de design caríssimas. Também se vêem mais carros e já não são as geringonças típicas de Berlim, aparecem BMW, Mercedes, Audis, antes nunca vistos!”
 
Marta é natural de Vila Real de Santo António e vive em Berlim desde 2010: “Nesse ano, mudou muita coisa no bairro onde vivia, incluindo na minha rua. No início, havia um café, um cabeleireiro, um quiosque de frangos, duas ou três associações de países árabes, uma loja-oficina de bicicletas para crianças, uma loja de eletrodomésticos usados e outra de móveis usados. No fim, já eram uns três cafés hipster (o outro que havia, fechou), duas lojas de design de moda, o cabeleireiro deu lugar a um Späti e abriu uma loja de discos vinil. A rua está irreconhecível."

A completar dois anos de residente na cidade, Luís nota menos estas alterações, mas enfatiza a subida dos preços das rendas das casas: “Em 2017 a média rondava os 400 euros por um quarto, este ano já era 500 euros.” Hoje, quando alguns amigos lhe contam que há 10 anos se alugava um apartamento inteiro por 300/400 euros, é-lhe difícil imaginar tal cenário. Luís aponta algumas diferenças em certos bairros de Berlim: “Claramente se nota que há zonas que antes não se frequentavam tanto e que agora se desenvolvem de forma interessante, como Wedding e Weissensee. Familias mais jovens que gostariam de viver em Prenzlauerberg mas que não podem comportar o valor das rendas porque se tornou mais caro vão para as outras zonas, como Wedding.”

Os bairros cool como Prenzlauerberg, Kreuzberg, Friedrichshain ou mesmo Neukölln começam a ser demasiado caros. Wedding é um caso típico de um bairro para o qual há dez anos poucos eram os que o escolhiam para viver, e que nos últimos anos tem visto a procura aumentar. Com ela chegou nova vida pelas ruas, maior oferta cultural, e, claro, novos cafés, restaurantes, bares... Há vários anos apelidado de “o próximo Neukölln”, Wedding é ainda um dos bairros mais acessíveis (e relativamente perto do centro), mas talvez não por muito mais tempo.

O QUE O FUTURO RESERVA

Em Berlim são frequentes as manifestações contra a subida acelerada das rendas e há uma consciência cívica cada vez mais forte, com vários grupos auto-organizados que oferecem ajuda: fazem consultoria, sessões de informação, organizam manifestações. No ano passado, Marta teve contato com um desses grupos, o Bizim Kiez, em Kreuzberg. “Fiquei fascinada com tanta organização e tanta energia. Tem havido cada vez mais resultados positivos! Este ano, a grande manifestação pela questão da habitação, co-organizada ou apoiada por mais de 200 destes grupos e associações, juntou perto de 25 000 pessoas”, conta com admiração.

A subida das rendas está definitivamente na agenda política, mas nem sempre é fácil acreditar que tal contribua para uma real melhoria da situação. “Claro, há tantas pessoas a ser despejadas que por consequência os políticos começam a falar sobre o tema e as sociedades de advogados para inquilinos (Mietergemeinschaft) fazem publicidade em todo o lado”. Cristina teme uma realidade problemática no futuro “Tenho uma visão muito negativa. Apesar de haver teoricamente leis que impedem a subida dos preços das casas, havendo procura, os donos na realidade podem pedir a quantia que quiserem. Como já ninguém faz contratos de arrendamento permanentes, depois de poucos anos - normalmente dois – os senhorios despejam as pessoas e arranjam novos inquilinos a quem cobrar muito mais.”
 
Marta considera que a situação vai piorar nos próximos anos. Apesar de uma parte dos residentes se organizar, manifestar e procurar consciencializar a sociedade, outra parte - os residentes mais recentes -  envolve-se menos “Como há sempre novas pessoas a chegar, que vêm por um ou dois anos ou que estudam com boas bolsas, que trabalham para uma start-up por pouco tempo, não se envolvem tanto nestes temas, enquanto os outros vão sendo empurrados para fora sucessivamente.”, afirma. Apesar de tudo, Marta é positiva: “Há uma energia muito positiva a ganhar terreno em defesa daquilo que ainda caracteriza a cidade e das pessoas que nela vivem e da sua dinâmica”.
 
Para Luís, apesar da notória subida das rendas, Berlim continua a ser uma cidade bastante acessível “Mais acessível que outras grandes cidades, como Londres ou Madrid”. Não acha que este desenvolvimento seja anormal, outras cidades também já passaram – ou passam – por este processo. É o caso da sua cidade natal. “Em Lisboa a situação é semelhante. No meu caso, e apesar das dificuldades em arranjar projetos aqui, Berlim continua a ser uma realidade muito melhor do que Lisboa para viver e trabalhar. Tenho melhores remunerações e oportunidades do que em Portugal, e trabalhos mais interessantes”, confessa.
 
Entretanto Berlim continua a atrair sempre mais gente e vários fatores juntam-se numa mistura com potencial para rebentar: a bolha do imobiliário cresce, o turismo está ao rubro e, com ele, o alojamento local; a gentrificação é visível e há cada vez mais pessoas preocupadas com esta realidade. Já muito foi dito e escrito sobre o problema da habitação na cidade, sob olhares mais positivos ou negativos. Este fenómeno tem repercussão em outras cidades europeias e a sua discussão continuará seguramente atual nos próximos anos.

Este artigo foi escrito em parceria com o Goethe-Institut de Lisboa encontra-se publicado na rubrica "Era uma vez...a crise" da revista cultural online do instituto. 

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