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"Bandido é minoria na favela" - MC Carol em entrevista

Mc Carol (c) Fernando Schlaepfer.jpg

29/03/2019

Foto: ©Fernando Schlaepfer

 

Carolina de Oliveira Lourenço, nascida no Rio de Janeiro em 1993, é uma cantora, compositora e ativista. Funkeira de nascimento, desde criança que é apelidada de Carol Bandida por sua personalidade forte e contestatária. Tem em Tati Quebra Barraco uma das suas mentoras e viu a sua carreira explodir com temas como "Bateu uma Onda Forte", "Jorginho Me Empresta a 12", "Liga pro Samu" e "Não Foi Cabral" e “100% Feminista”. A internet e as redes sociais contribuíram para a rápida difusão da sua música e a tornaram numa das mais importantes artistas da cena carioca do momento. Apresenta-se em concerto em Berlim a de 6 de Abril no Club Gretchen, após sua “fulminante actuação para 400 pessoas no ano passado”, como se pode ler na descrição do evento no site.

 

As suas músicas tornaram-se conhecidas por abordar temas sociais, como a violência cotidiana ou racismo, bem como feminismo e sexualidade. Muitas dessas canções tem um tom humorístico e decerto todas têm algo em comum: um tom reivindicativo pelos direitos das mulheres, a população negra e pobre das favelas e no Brasil em geral. Assumidamente feminista, MC Carol é uma defensora da liberdade de expressão e de escolha e é conhecida pela sua determinação e frontalidade “O seu amor por você não tem a ver com o seu corpo. O que mais tem são mulheres magras que não gostam de si próprias. E aí vão lá, botam silicone aqui, silicone ali. Aí muda a cara, mexe no nariz, bota boca, cresce a boca. Continuam não se gostando. Porque o gostar vem de dentro. É uma coisa que a gente tem que curar dentro, não é fora”, disse na entrevista com a Berlinda. A Rainha Feminista contou-nos um o seu percurso artístico, origem do nome bandida e falou das lições de vida que foi acumulando durante a sua infância e adolescência que agora transmite para milhões de pessoas nas suas músicas.

Suas músicas como “100% Feminista”, “Não foi Cabral” e “Marielle Franco” já se tornaram temas em sala de aula ou até mesmo comentadas em teses de mestrado, por serem assuntos com políticos e de história. Como é que a música pode ajudar a diminuir as diferenças sociais que existem no Brasil?

As músicas são causadoras de emoção. Acho que o funk foi criado para isso, para causar emoção e impactar. Na época do Cidinho & Doca, Rap do Silva, foi uma parada pra poder denunciar o que estava acontecendo ali dentro. Tem pessoas que não sabem ainda o que rola lá dentro. Toda essa violência que a gente sofre dos dois lados. O funk é isso. O funk que chamam de “funk proibidão” fala da violência que a gente sofre diariamente, tanto da polícia como do bandido. Se você analisar um funk proibidão, tem música que fala que “vai deixar a mulher careca”, tem música que fala “vai matar o vacilão!”. E também da violência policial, porque a polícia invade, troca tiros no horário de criança ir para colégio. O funk é uma forma de denúncia. Se você mora no Sul e você não sabe o que acontece no Norte, e aí? Como vai mudar aquilo se ninguém sabe o que está acontecendo? Algumas pessoas comentam que o meu trabalho é errado, o que eu faço é errado, cantar palavrão é errado. Não fazem ideia do quão difícil foi a minha vida, a minha adolescência. Meu avô morreu eu tinha 14 anos e a minha vida virou um inferno. Eu estudava, eu fazia esportes. Acho que aos 16 anos eu tive que largar tudo para poder trabalhar. E eu trabalhava de carteira assinada? Não! Eu carregava material no sol, lavava carro, fazia vários tipos de bicos para poder me alimentar… As pessoas não têm noção do quanto é difícil morar na favela, ser pobre, ser negra, ser mulher.


 

Sua carreira foi impulsionada através da internet, pelos canais do youtube e as redes sociais. Estas plataformas continuam a ser seus principais veículos de divulgação e também a interação com seus fãs? Porque a internet é tão importante para uma carreira artística atualmente?

Na verdade, quando eu comecei, em 2010, era uma época de CD. Nem todo o mundo tinha computador, nem todo o mundo tinha celular. Os celulares daquela época não tinham internet. Já tinha Youtube na Lan House. A divulgação era feita com 1000 CDs que a gente comprava, rodava e fazia a parada num cara que tinha computador e depois distribuía esses CDs. Você tinha que entregar CD de porta em porta. Mas, já tinha o Youtube. Comecei cantando em baile funk e aí fui convidada para gravar o DVD da Furacão. Quando saiu foi um estrondo. Como eu não tinha computador, eu fiquei sabendo no programa do Wagner Montes que a música estava com quatro milhões de acessos no Youtube. A internet vem crescendo muito e é muito importante. A internet é tudo. Se derruba a internet, volta para o CD. Essa parada de CD é muito difícil, porque quem distribui CD vai distribuir perto de casa. E os outros lugares? E os outros estados? E a internet é isso, um meio de comunicação entre todos os estados e até países. Eu viajei três vezes para o exterior e foi por isso, através da internet.

 

Ainda sobre o tema internet/redes sociais. Infelizmente você recebe diariamente na sua conta (Facebook ou Instagram) pessoas que tentam te atacar, comentários machistas, racistas, bullying, gordofobia e até mesmo difamação. Como você lida com essa parte negativa no seu dia-a-dia?

Eu acho que isso talvez seja uma parada de como você foi criado. Se você foi criado para ser uma pessoa sentimental ou uma pessoa que não liga para ninguém. Eu cresci nessa vibe de ser uma mulher policial e já tinha uma personalidade muito forte. Eu não sou uma pessoa sentimental que vai ligar o que um estranho falou. Eu acho que lido bem. Respondo a algumas coisas, mas não porque aquilo me consome ou me deixa triste. Eu bato boca por bater. Nada disso me incomoda, não. Eu acho que a pior fase é na escola, quando a gente é pequeno, a gente ainda não sabe se defender. Foi na época da escola que eu sofria bullying que o meu avô me foi ensinando algumas coisas que eu não sabia. Eu não sofria por ser gorda. Eu já era gorda, mas eu sofria por ser negra. Até eu entender aquilo, foi complicado. Quando você é criança, você não entende o porquê do porquê, você não entende tanto ódio. Até quando cresce é difícil entender.  Esse foi um processo um pouco demorado e bem doloroso. Eu me lembro de falar para o meu avô “eu cansei de ser negra”. E aí eu tomei um tapa no rosto, que acho que doeu mais no meu avô do que em mim. Eu lembro que fui para o quarto, chorei e pensei. Depois meu avô foi lá e conversou comigo, disse que eu tinha que ter orgulho da minha cor, que não me podia me importar com essas pessoas. Porém, meu avô era branco de olho azul e ele conversou isso comigo. Minha avó era baiana negra e meu avô louro. A partir dessa conversa comecei a lidar melhor com isso e fui crescendo nesse ritmo aí, de não me importar nem com o amor nem o ódio de ninguém. Então eu acho que isso foi muito da minha criação. Foi um processo complicado, mas graças a Deus eu tive essa educação, de aprender a gostar da minha cor, do meu corpo e a me amar em primeiro lugar. E eu estou pouco me lixando para os outros.

 

"Bandida", foi o seu disco lançado em 2016 e tem este título sugestivo que passou a defini-la - MC Carol Bandida. De onde vem esse nome?

Vou voltar à minha infância de novo. Com 5-6 anos eu já tinha uma personalidade muito forte. Já tinha opinião. Uma vez pedi para a minha avó amarrar o meu cabelo, que chegava no ombro e estava me incomodando. E ela falou que eu era mocinha, que tinha que andar com o cabelo solto. E estava calor, eu não estava aguentando mais. A minha avó virou as costas e eu peguei uma tesoura que ela deixava enfiada dentro dum tijolo no quintal e cortei o cabelo. E aí fiquei feliz da vida careca mas a minha avó brigou muito comigo. Eu sempre fui assim. Eu era muito brigona desde pequenininha. E aí, alguns adultos começaram a falar isso para mim “quando você crescer você vai ser bandida”. Me apelidaram com 5-6 anos. Eu fui crescendo e isso virou meu apelido. Se for na minha comunidade, a maioria me chama de bandida. Às vezes as pessoas até podem pensar coisas erradas. Eu nunca fiz nada de errado, pelo contrário. Até aos 14 anos eu tinha planos de ser policial, fazer esportes para poder ter um condicionamento físico bom. Eu tinha personalidade forte, não era sentimental, era obstinada, brigona.

 

Em 2017 anunciou seu interesse em candidatar-se a deputada estadual do Rio de Janeiro. Hoje, depois das eleições conturbadas no Brasil e um novo presidente no poder, como você vê a situação actual do país?

Eu vejo a situação actual do país bem triste. Preocupante. Às vezes eu tenho a sensação que a gente está vivendo a época de Hitler. É muito complicado. É muito preocupante ter um presidente com esses pensamentos. Por exemplo, eu sofri uma tentativa de feminicídio em abril do ano passado. Eu só estou viva, eu só consegui lutar, porque era um facão, se fosse um revólver eu não ia conseguir lutar. Foi difícil lutar com um homem maior do que eu e mais forte. Mas eu tentei e graças a Deus eu consegui.  Agora se fosse uma arma, não tinha como, porque a pessoa entrou determinada a terminar com a minha vida. E nada do que eu falasse na face da Terra ia mudar o que ele entrou para fazer. E aí eu fico pensando: “Imagina todo o mundo armado!”. O Brasil é uma bagunça. O Brasil é um país que foi roubado. Foi roubado pelos portugueses e é uma bagunça desde então. As pessoas aqui não respeitam ninguém. A gente não tem a doutrina de respeitar o outro. Eu falo pelo que aconteceu comigo. Eu sofri essa tentativa de feminicídio e o juiz simplesmente deu a este homem 6 meses de prisão e 11 meses indo dormir na prisão. É um absurdo. Nosso país é um absurdo. Então, é muito preocupante a gente ter um presidente que fala em ter armas, que diz claramente que não pode subir as favelas carregando flores. Bandido é minoria na favela, é 10-20 pessoas no máximo numa comunidade. E o resto da comunidade que morre, que toma bala perdida, que vai preso inocentemente, nisso as pessoas não pensam. A maioria são pessoas honestas. E a outra coisa é que eles quando vão combater o tráfico, não sobem metralhando num apartamento quando querem apanhar alguém grande. Eles não entram num condomínio atirando, é só na comunidade que acontece isso. É um absurdo! Há pouco tempo teve um helicóptero atirando para baixo na minha comunidade. Esse é o Brasil que a gente tem.

 

Em entrevista à Veja no mês passado você diz que cresceu com medo de brancos e que esse medo ainda está presente em algumas situações da sua vida atual. Como você explicaria às pessoas as consequências de serem racistas?

Eu cresci com esse medo de branco porque eu bati de frente com o racismo na escola. Se as crianças fazem esse tipo de coisa - me xingavam, me agrediam, me humilhavam  - eu ficava imaginando os pais dessas crianças. Eu ficava imaginando os adultos brancos e o que eles poderiam fazer. Eu cresci com medo mesmo. Engraçado, eu não tinha medo da polícia, eu queria ser uma. Eu não sabia o que era a polícia. Conforme eu fui crescendo, fui ficando com medo da polícia. Com medo de homens, Fui tendo outros medos. A minha família tem muitas pessoas brancas. Da minha família eu não tinha medo, porque eles me tratavam normal. Não faz sentido você ser racista porque outra pessoa é; porque sua mãe é, porque seu avô era, ou seu amigo é. Não faz sentido você tratar mal uma pessoa por causa do tom de pele dela. Não faz sentido você achar que uma pessoa é menos que você por causa do tom de pele dela. É só pele. Temos as nossas diferenças. Às vezes você vê um cara baixo tendo preconceito com gordo, o gordo tendo preconceito com o negro, o negro sendo machista, a mulher sendo homofóbica… não faz sentido. Somos todos iguais mas diferentes. A gente tem que saber lidar com as diferenças. A gente tem que respeitar o outro. No nosso país não tem consequência, você não vai preso por ser racista. A gente tem um presidente racista. A consequência é que a gente não sabe o dia de amanhã. Hoje você é racista mas amanhã você pode se apaixonar por um negro. Não tem consequências juridicamente mas é uma coisa muito ruim você ter ódio de uma pessoa porque ela é negra ou porque ela é gorda.

 

Apesar de toda a discriminação que você sofreu enquanto cresceu e até mesmo nos dias de hoje - por seu peso, gênero e cor da pele -  você é hoje uma mulher com uma enorme auto-estima. Há outras mulheres que entram em contato com você para conversar ou pedir ajuda? Qual conselho você daria para alguém que não se sente confortável com seu corpo ou se sente com vergonha?

Eu sempre falo que a gente tem que ter auto-estima, a gente tem que se amar. Lógico que a gente não acorda todo os dias se amando, se gostando, mas a gente tem que gostar. A auto-estima é a base de tudo. É a base para você ter um bom trabalho, um bom desempenho. Para você ter uma vida um pouco melhor, mais feliz. O conselho que eu dou é esse: não se importar com nada, com ninguém. As pessoas tentam ao máximo jogar frustrações nas outras. Eu às vezes recebo mensagens gordo-fóbicas de pessoas gordas. Tipo assim “Não sei como você tem coragem de pro a barriga para fora com estrias. Eu sou gorda e não tenho coragem. Como você tem coragem?” Recebo mensagens de homens gordos também. O que mais me entristece é mulheres gordas falando esse tipo de coisa. Fui num consultório no ano passado de um endocrinologista, porque eu preciso perder peso por motivos de saúde. Aí quando saí do consultório, uma mulher que já tinha emagrecido bastante estava conversando com a minha prima e eu ouvi ela dizer “Como é que você se ama, como é que você sai na rua. E a minha prima, do mesmo tamanho que eu, calada, deprimida. Ela deprimiu a minha prima. Ai eu virei bicho e falei, você tá maluca? ”. A mulher depois disse que quando ela era gorda tinha vergonha dela. Ninguém gosta de ser gordo. Mas a gente gente gosta de ser gorda, a gente nasceu gorda, não ficou gorda de um dia para o outro.

Entrevista feita por Tâmera Vinhas e Rita Guerreiro

Tâmera Vinhas

Tamera Vinhas (c) Marcelo Gigante.jpg

Tâmera Vinhas é originária do Rio de Janeiro. Em Berlim já participou de vários projetos musicais, tendo começado por colaborar com o grupo Sambada de Coco. Atualmente faz parte do Grupo Afojuba Berlin e, mais recentemente, juntou-se ao La By'le, grupo que mistura batidas do Funk Carioca junto com Hip Hop e Rap alemão. Participou do GIRA - Festival de Resistência em Setembro de 2018.e é voluntária do grupo de visitas a  crianças hospitalizadas da Berlinda desde 2015. 

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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