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Projeto Iê Ação Cultural: uma aposta forte no intercâmbio Brasil-Alemanha | Conversa com Júlio César Balbino
Foto: Esquerda - Júlio César Balbino. © Divulgação. Direita - © 5.º Festival de Cultura Afro-brasileira. © Iê Ação Cultural
A Berlinda falou com Júlio César Balbino (Mestre Pim-Pim), idealizador e diretor do projeto Iê Ação Cultural, dinamizador do 5.º Festival de Cultura Afro-brasileira, que decorre até ao final de novembro.
A viagem para a Alemanha começou em 2009, quando Júlio César Balbino e o projeto Iê Ação Cultural foram convidados para trabalhar em parceria na Escola Cultural Brasil em Nürnberg, na Alemanha. «Foi a primeira vez que eu vim para Europa. Em Berlim eu conheci o Forum Brasil, eles fizeram uma proposta de parceria, e foi onde se foi criando o corpo e se consolidando aqui o projeto Iê», explica Balbino.
A adaptação à vida na Alemanha não foi «tranquila», diz Balbino: «O choque cultural é muito grande, principalmente para mim que não havia saído do Brasil ainda. Mas eu fiquei encantado e feliz particularmente de estar em Berlim, por conta da diversidade étnica que aqui existe. Paralelo ao projeto, que vem com essa proposta de trabalhar a cultura afro-brasileira e estar aqui em Berlim e ter contacto direto com outros povos, para mim, foi fantástico.»
Vindo do Brasil, o projeto Iê Ação Cultural passou a existir oficialmente em 2007, mas as suas ações já existem desde 1988, sobretudo em torno dos universos da capoeira e da percussão. Diz-nos mestre Pim-Pim: «Eu trabalho com capoeira e percussão e procurei trazer essa minha vivência como proposta para o projeto Iê. Então se tornaram os dois eixos mais fortes: a percussão e a capoeira, a capoeira Angola especificamente.» E acrescenta: «Entre esses dois eixos, a gente abre janelas para outros temas extras ao tema central da percussão e da capoeira, sobre a cultura afro-brasileira como um todo, como as demais expressões: maracatu, jongo, samba, tambor de crioula, candomblé. E, claro, por falta de vivência e propriedade para dizer sobre essas demais expressões, nós convidamos pessoas com conhecimento de causa para falar sobre.»
Desta partilha, surgiu a aposta forte do projeto Iê nas parcerias, para alargar esta divulgação da informação sobre a cultura afro-brasileira e a cultura africana. «Agora, em Berlim, nós temos mais um parceiro, o Afrika Yetu e.V., que está trazendo uma base africana. Ele é de Angola, é uma parceria super importante para nós. Além do Forum Brasil e. V., o nosso primeiro parceiro, que trabalha especificamente com a cultura brasileira», informa Balbino.
Foi após esta primeira parceria que surgiu a ideia de criar subprojetos, entre os quais o IÊALEMBRASIL, nome dado ao Festival de Cultura Afro-brasileira, que teve a sua primeira edição em 2011. «Eu cheguei aqui com o objetivo de dar continuidade às ações que tinha no Brasil e o formato que até então eu achei possível, de uma forma flexível, de estar levando informação sobre a cultura afro-brasileira e a cultura africana, e, ao mesmo tempo, levando o entretenimento foi através do festival. Nós trouxemos, dentro da programação, ambos, discussões e também momentos de entretenimento», esclarece Balbino.
Tal como Balbino, «o festival está-se adaptando». Conta-nos o mestre que: «Em 2011, foi muito pequeno, muito tímido, porém importante. No segundo, já teve três convidados do Brasil: o Sérgio Luís, sociólogo e historiador, para falar sobre a diáspora negra; o mestre Divino de capoeira angola; e também o professor Largartixa, como é conhecido Amaury, que também é historiador e trabalha com capoeira com pessoas com deficiência física na APAE [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais].»
O grande problema continua a ser a falta de financiamento, mesmo depois da candidatura à verba destinada para intercâmbios do MinC (Ministério da Cultura brasileiro), da qual ainda não obtiveram uma resposta positiva: «A cada edição, está subindo dois/três degraus, também por falta de apoio, porque até agora, tudo o que aconteceu foi por conta própria, fomos nós que mantivemos os gastos, ainda não tivemos apoio. Nós temos parceiros que abrem portas para que aconteça lá, como foi o África Yetu, o Forum Brasil, mas apoio financeiro, não», lamenta Balbino.
Ainda assim, a meta está lançada: consolidar o intercâmbio entre a Alemanha e o Brasil. No ano 2011, o IÊALEMBRASIL teve duas edições, ambas na Alemanha, sendo que as duas edições seguintes, em 2012 e em 2013, se realizaram no Brasil. «Em 2012, nós tivemos um intercâmbio com quatro alunos que foram para o Brasil, para conhecer as comunidades do Brasil e participar no festival lá. Em 2013, aconteceu no Brasil, que foi a propósito de conhecer as comunidades de Rio de Janeiro, Belém, Salvador, São José do Rio Preto, Sertãozinho e São Paulo», conta Balbino. Já o deste ano, 2014, decorre até ao final do mês de novembro, em várias cidades da Alemanha Berlim, Görlitz, Zittau e Hirschfelde) e em Amesterdão, na Holanda. O objetivo será continuar com esta linha, fazendo o festival circular entre o Brasil e a Alemanha. «A proposta é intercalar, acontecer um aqui e, no outro ano, no Brasil. A partir do momento em que a gente tiver apoio e conseguir viabilizar, quando acontecer no Brasil, vão para lá alunos daqui (alemães ou outros) e quando acontecer aqui, vêm de lá para cá. Acontecer todos os anos, porém, cada ano num país», ambiciona Balbino.
A escolha do mês de novembro para a quinta edição deste festival não é por acaso, coincidindo com o Mês da Consciência Negra, uma ampliação, segundo Júlio César Balbino, necessária, do Dia da Consciência Negra, que se celebra a 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, representante da luta dos negros contra a escravidão, durante o período colonial no Brasil. «Eu fiz parte do movimento negro, sou militante, vivencio muito latentemente essa questão da discriminação racial, preconceito, [sobre a qual já] participei de várias conferências no Brasil. Não me vejo então desconectado, independentemente de estar na capoeira ou na percussão, desse tema central que é a questão sociopolítico-cultural.» Esta discriminação racial sente-se ainda muito no Brasil e, segundo Balbino, é também evidente em Berlim: «Mesmo que haja uma diversidade cultural, nem todas as pessoas estão conectadas a esse tema. E muitas vezes, imperceptivelmente, cometem esses deslizes de discriminar o outro. Isso a gente percebe em discussões, em palestras, em debates, é óbvio muitas vezes.»
Para Balbino, o tema da consciência negra é muito importante na divulgação da cultura afro-brasileira, já que, segundo o mestre, esta nem sempre se mostra da forma mais adequada: «Um dos pontos que é falado muito no Brasil é a cultura afro-brasileira aqui, muitas vezes, se vendendo, ou por outro lado, se submetendo a ter de sobreviver com o seu conhecimento cultural. Ou seja, essas apresentações que temos, shows de capoeira, de samba, de frevo, que muitas vezes estão mostrando apenas o exótico, o corpo, no meu ponto de vista, vendendo o corpo, e nesse ponto eu sou um pouco radical, literalmente vendendo a cultura. E, claro, essas pessoas que fazem isso muitas vezes são reféns, ou seja, “eu estou aqui, não tenho trabalho, eu tenho esse conhecimento, vou usar para sobreviver”. É até, por um lado, entendível. E as empresas que os contratam se aproveitam dessa situação, porque o que eles estão apresentando para um empresário é interessante porque vai trazer um elemento de entretenimento para o público, e não pelo que a pessoa está fazendo em si.»
No próprio Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, vai acontecer no Forum Brasil, «uma roda de capoeira angola, que claramente vai envolver nas cantigas o tema. Vai ter uma abertura com duas/três pessoas que vão representar esse tema, falando sobre, e o Murah Soares também vai oferecer a culinária brasileira. Eu faço questão que seja dentro do Forum Brasil, a nossa base, a nossa sede central aqui em Berlim, a nossa referência, o nosso primeiro parceiro; e por ser uma casa de candomblé. É ali, tem de ser ali.»
Relativamente a este 5.º Festival de Cultura Afro-brasileira, Balbino gostaria de «ressaltar a importância da soma de forças, da parceria». E continua: «Nós estamos vivendo num mundo extremamente individualista, competitivo, onde um se sente na necessidade de querer ser e saber mais do que o outro, esquecendo que não é possível. Eu sempre dou um exemplo simples: vejo todos nós como peças de um quebra-cabeças. Então é um formato, cada um tem o seu conhecimento, mas ao final, precisa de todas essas peças para formar o quebra-cabeças . Se tem um que falta, vai ter um espaço ali a preencher. O que eu gostaria de ressaltar é o respeito entre a diversidade cultural e valorização independente de conhecimento, de cor, de situação financeira, entender que o outro é importante tanto quanto eu.»


Raquel Dionísio
Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1981. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, já colaborou com publicações como Diário de Notícias, Artecapital e Artes & Leilões. Vive e trabalha em Berlim desde agosto de 2014.