top of page

MAGAZINE

Do analógico para o digital

Texto e Foto: Cruna Encarnação

Analogico Ditigal (c) Cruna Encarnacao.j
Cruna Encarnacao.jpg

Cruna Encarnação

Mudou-se em 2015 para Berlim, onde começou a estudar Filosofia e Literatura Comparada na Freie Universität. As suas áreas de interesse abrangem a Fenomenologia, a Teoria Feminista e Queer, Neo-Materialismo e Pós-Estruturalismo. Em Lisboa e em Berlim participa em leituras de poesia e já desenvolveu alguns trabalhos de vídeo. Escreve para a plataforma "Liberoamérica" e está envolvida em trabalhos de tradução entre Português e Alemão..

Foi um ou dois anos antes de ter ido viver para Berlim que começou a emergir a crítica mais acentuada ao consumo desenfreado de produtos manufaturados em massa e através de recursos humanos, animais e naturais altamente questionáveis. Começaram a surgir cada vez mais vegetarianes,  les veganes deixaram de ser aberrações. Isto tudo em Portugal. Passei grande parte da minha adolescência (talvez a mais importante) rodeada des herdeires de um revival analógico e psicadélico, de impulsionadoris do graffiti lisboeta tal como ele é praticado agora, de uma maneira de viver reactiva ao surgimento da internet e de uma realidade imaterial, digital, ilimitada. Vivi e aprendi rodeada por uma valorização de algo que começara a ser apagado pelo crescente digitalismo do mundo. Todes começaram a ler Orwell e Huxley, a recusar o uso do smartphone.

Fazíamos coisas à mão e andávamos sempre a pé. Preferíamos a rua à discoteca, preferíamos fazer música do que esperar. A inspiração vinha da música tocada, da partilha, das vanguardas do século XX, vinha do DADA e do punk, do ska, do glamrock e do Tropicália. O medo era o mundo fragmentado em milhões de identidades que esqueceram o mundo onde nasceram, uma alienação de uma tal ideia de Natureza que todos partilhávamos, o triunfo da máquina e a extinção apocalíptica e auto-destrutiva da humanidade. Havia qualquer coisa de ambíguo em relação ao intelectualismo: por um lado uma vontade de o praticar, por outro lado, um receio de o sobrelotar. Por outras palavras: uma procura pelo conhecimento, mas uma aversão ao overthinking.

Vestíamos cores e formas, usávamos objectos do mundo com história material. Fomos também vítimas da vaga de turismo desmedido em Lisboa. Testemunhámos a apropriação daquilo que era o nosso dia-a-dia em prol da geração de capital. Este dia-a-dia passou a ser objecto consumível e negociável, metamorfoseamo-nos em animais do jardim zoológico. Reconhecíamos as vantangens da globalização, mas sofremos na pele uma das desvantagens da sua má gestão. Talvez não deva falar por um colectivo, falo daquilo que senti que me rodeava e que me esculpiu de uma maneira ou de outra.

 

Berlim e o outro lado da moeda 

Em Berlim aprendi e cresci deparando-me com o outro lado da moeda. Fui para lá viver para estudar Filosofia e Literatura Comparada na Freie Universität. A primeira coisa com que me deparei foi a abordagem assustadoramente diferente às ideias a que estava habituada. Chamem-lhe mais académico, mais pensado, mais maduro, menos experimental, mais sério. Havia qualquer coisa na troca de ideias, na comunicação e na maneira de conhecer gente que divergia daquilo a que fora habituada. As conversas não partiam de vivências pessoais para uma eventual reflexão mais abstrata e abrangente sobre o mundo, como em Lisboa. Comecei a reparar que as conversas nunca começavam com um “nem sabes o que me aconteceu no outro dia” ou “ontem quando estava a ir para casa” ou “a minha vizinha noutro dia veio ter comigo e perguntou-me se queria ir beber um café”. Pelo meio arruaçado em que crescera em Lisboa, acabei por desenvolver a necessidade de arranjar conforto intelectual para discutir x ou y, sentindo-me apenas à vontade com a(s) pessoa(s) com quem o fazia através de uma prévia troca de vivências e experiências pessoais. As discussões partiam depois daí para a política, para a filosofia, para a arte. Em Berlim comecei a perceber que as discussões decorriam exatamente ao contrário. Toda a conversa em que me via metida começava com uma opinião, um posicionamento ideológico.

 

A dimensão individual e íntima da conversa não era prioritária para que esta se desenrolasse. Talvez se chegasse a ela se a própria conversa permitisse, mas nunca constituía algo de mandatório. Comecei a ver-me metida em diálogos casuais com intervenções de 10 minutos. Comecei a perceber que as pessoas à minha volta discutiam a natureza de qualquer objecto aleatoriamente colocado à nossa frente e que daí esmiuçavam a legitimidade de se usar esse objecto ou não ou se o uso desse objecto refletiria qualquer coisa sobre a nossa própria identidade. Comecei a viver no meu dia-a-dia uma desconstrução refletiva de mim e de tudo aquilo que me rodeava. Do nada, tudo passou a adquirir uma dimensão altamente política. Não falo contudo de uma dimensão política prática, tal como aquela que conhecia da minha adolescência, mas sim “conceptual” (mesmo que odeie expor estes dois extremos de forma tão dualista).

Foi precisamente este o primeiro choque a que fui sujeita em Berlim: uma politização diária de tudo e de todes, uma reflexão sobre tudo e todes, uma certa abstracção intelectual oposta a uma antiga racionalidade e inteligência emocionais e situadas, a descoberta de uma complexidade das coisas que negava ao conformar-me com uma crítica simplista e redutora que lera no Admirável Mundo Novo e no 1984, um (re)pensar exacerbado e um agir extremamente conceptualizado. E pensei ao princípio que toda esta maneira de ser caracterizasse o círculo académico dos entusiastas da Filosofia e da Literatura. Todavia, acabei por perceber que era algo transversal na cidade de Berlim.

 

Bares vs vida noturna de rua ou aversão vs fascínio tecnológico

Um dos fenómenos na minha nova vida de Berlim que começou a reflectir esta transição do“situado emocional” para um tal “abstracto intelectual” foi a frequência com que comecei a ir a bares e a deixar a vida noturna de rua. Continuo a ter saudades de um certo tipo de boémia que tanto ligo à noite lisboeta, a algo mítico, a uma pujança da natureza humana (demasiado humana). Passei a viver quase exclusivamente uma vida de bar, de caras envoltas em fumo e escassa luz das velas. Comecei a ter medo de ser diletante, de pensar e falar demais e não fazer nada. Comecei a ver o Hemingway e o Bukowski na mesa à minha frente, dando-me as boas vindas ao lado negro. O movimento da rua para o bar foi para mim um claro reflexo daquilo que era a transição da minha vida de Lisboa para Berlim.

Aquela tal reação negativa ao desenvolvimento tecnológico que caracterizou grande parte da minha adolescência traduzia-se num medo e terror pelos cenários distópicos, onde a humanidade destruíra o mundo e se destruíra a si própria. O triunfo do robot e da máquina aterrorizava-me. O crescente número de pessoas à minha volta de cabeça virada para o ecrã do telemóvel dava-me pesadelos e ataques de ansiedade. Vinha-me o vómito à boca cada vez que surgia uma nova invenção ou upgrade da inteligência artificial personalizada.

Foi também em relação a isto que mudei. Nunca tive intenção de esquecer ou de largar os ideais anti-tecnologia que me rodearam durante a minha adolescência, mas comecei a perceber que havia muito mais para além do perigo dos cenários distópicos e apocalípticos, em que a terra se metamorfoseia em bola de cinzas rodeada de lixo metálico flutuante. Ao reconhecer uma tal “complexidade” das coisas que referi em cima, principalmente a besta que é o patriarcado, comecei também a olhar para a tecnologia como potencial salvação e canal de visibilidade para todes aquelis que sofrem sob a repressão do mesmo. Afinal fora a internet que possibilitara uma espécie de “revolução queer” dos últimos anos. Comecei a ler Donna Haraway e Karen Barad, a discutir o pós-humano, a reviravolta do cyborg. Muitas pessoas que me interessavam à minha volta vestiam roupas florescentes, gostavam de ficção científica, usavam o instagram, usavam smartphone, sabiam tantas coisas interessantes que haviam aprendido algures no ciberespaço.  Comecei a perceber que na realidade já somos todos cyborgs, passei de pavor para fascínio pelas máquinas, como seres com os quais podemos coexistir e abdicar do nosso orgulho humano para viver num mundo melhor.

Esta celebração da tecnologia era também algo que via na roupa das pessoas: minimalista, spacy, sci-fi. Um distanciamento daquilo que é ser humano, a adoção de um novo conceito de Natureza que não se separa de forma tão extrema do conceito de Cultura, onde a alteração do mundo provocada pela Humanidade também é olhada e aceite como parte do fluxo natural das coisas. Algo de suspeito para alguém que vinha da terra ou do grupo de pessoas que misturavam fantasias, cores e feitios, fazendo colagens dada de si próprias como cruzamento entre diversos fenómenos mundanos. Contudo também algo que olho agora com outros olhos e que me inspira também. Mesmo que nunca tenha deixado de reconhecer e de temer os seus perigos, o mundo globalizado que olhava de nariz torcido numa Lisboa invadida pelo turismo tornara-se algo esperançoso.

 

Lisboa e Berlim: dois extremos enraizados

E é neste balançar que vivo desde então, entre estes dois extremos que me parecem igualmente legítimos e importantes para a minha formação e para o mundo. Entre a criança naïv que faz e o adulto consciente que pensa, entre o provocar e o defender, entre a tecnologia como incentivo a um individualismo fechado em si e a tecnologia como canal de ligação e de visibilidade de todes les habitantes do mundo (principalmente les marginalizades), entre a tecnologia como fixação do humano e das suas ideias e a tecnologia como movimento de transcendência dos limites antropocêntricos, entre a ideia de uma primordial Mãe-Natureza e a ideia de uma Natureza que está profundamente fundida com a Cultura, entre uma adaptação do indivíduo às estruturas do mundo e uma alteração das estruturas do mundo através da afirmação do indivíduo.

Não tomo Lisboa como o antes e Berlim como o depois, mas vejo dois extremos enraizados em mim que me puxam para um lado e para o outro e que limitam o espectro daquilo em que acredito e por que luto. O antagonismo de Berlim em relação a Lisboa é neste momento um dos maiores conflitos pessoais da minha vida. Contudo, é também aquilo que conferiu flexibilidade e fluidez à minha identidade. O (por vezes angustiante) conflito interior de um balançar entre dois extremos opostos é aquilo que nos faz não só perceber o mundo à nossa volta, mas que nos obriga também a encontrarmo-nos a nós próprios. É aquilo que nos faz ultrapassar a ideia de que esses dois extremos são realmente dois lados opostos e separáveis.

 

NOTA: Não procuro com este texto reforçar qualquer noção de binarismo ou dualismo. Faço um relato da vida em dois sítios diferentes que tento separar apenas estrategicamente em termos geográficos e cronológicos. Acredito que a separação que descrevo entre os dois é aquilo que, no final de contas, os une também.

bottom of page