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“Viver de música é resistência” – Entrevista com Daniel Arruda

Arruda (c) Bossa FM.png

17/04/2020

Foto: ©Bossa FM

A primeira frase do novo álbum: “É chegada a hora de se preocupar com aquilo que realmente importa” dá o mote para um disco que procura consciencializar e celebrar diferenças. É ao mesmo tempo um trabalho muito pessoal, que marca a retomada de Arruda como artista independente. A Berlinda esteve à conversa com o músico Daniel Arruda, residente em Berlim há 14 anos, que desde a sua chegada em 2006 se encontra envolvido em vários projetos e colaborações musicais na cidade. O lançamento oficial do novo álbum “Sêmente” estava marcado para o dia 22 de março no Psicotrópicos Festival. No contexto dos recentes desenvolvimentos em torno da pandemia do Coronavírus, o evento foi cancelado. O Psicotrópicos Festival é organizado pela Bossa FM, que anunciou o cancelamento lamentando a decisão tomada. Drika Barbosa, MC Tha ou Tiago Nacarato eram alguns dos nomes em cartaz, entre outros artistas residentes em Berlim.

 

 

Conta-nos um pouco sobre o teu percurso musical, que te trouxe até Berlim.

 

Eu comecei digamos na prática tocando em bandas marciais, as chamadas fanfarras, em minha cidade natal, no interior de São Paulo.

No Brasil é muito comum termos música ao vivo nos bares e restaurantes, foi onde continuei a trilhar meu caminho na música e o que creio ser uma grande escola para o músico popular, pois exige um repertório extenso e variado. Comecei também a compor desde muito cedo meio de brincadeira ou desviando-me do compromisso de tocar os arranjos ao pé da letra, até mesmo por incapacidade técnica, algumas vezes. Sempre achei mais instigante interpretar à minha maneira, trazendo assim um pouco de mim para a versão em questão. Minha primeira banda foi de rock, naturalmente…(risos) em minha terra natal, mais tarde tocando em bares até virar produtor de eventos, uma banda de forró ritmo que me conquistou em meio a tantas viagens ao nordeste do Brasil, onde passei verões inesquecíveis. Foi daí que trouxemos a influência e as ideias para começar a promover eventos em minha terra natal, onde também montamos um dos bares na época. Partindo para o Chile em meados de 2001 e logo depois cruzando o oceano com destino a Barcelona, onde com minha primeira banda em solo europeu, com um estilo que podemos chamar "mestizo", com influências de Manu Chao, Bob Marley, Luiz Gonzaga ou mesmo Rage Against the Machine. Estivemos tocando por toda a Espanha até que a banda, tal como tudo que é bom, acabou. O destino seguinte seria Berlim, onde comecei de verdade a me dedicar com mais afinco à música autoral.

 

Como é fazer música brasileira fora do Brasil? É bem recebida pelo público alemão ou sentes que a maior parte do apoio vem da comunidade falante de português?

 

Eu sempre tentei fugir um pouco dos estereótipos, o que de certa forma deixa  minha música menos comercial, pelo menos do ponto de vista estético, creio eu. Por outro lado, já escutei produtores que me encomendavam canções sem essa típica “brasilianische Melodie” (melodia brasileira),  mesmo eu achando que não fosse o caso. No começo por aqui e paralelamente aos shows fui encontrando outras possibilidades e acabei me envolvendo com a produção de música infantil, que rendeu alguns discos e audiolivros e, até um musical no teatro. Esse disco novo vem trazendo uma coletânea de canções que compus durante todo esse tempo e inevitavelmente algumas que nasceram em meio ao processo pela necessidade mesmo de expressão. O público alemão é bastante exigente e ao mesmo tempo tímido, eu diria, não se expressa de maneira espalhafatosa como nós latinos, que estamos mais acostumados a dançar de forma livre e com menos roupa devido ao calor, e também rimos e falamos alto, abraçamos e nos cumprimentamos com beijo, por exemplo, algo inimaginável para um alemão à primeira vista. A comunidade lusófona tem crescido e ganhado muita força nos últimos anos creio eu, tem uma galera jovem chegando e trazendo uma energia renovadora incrível, o que penso ser muito positivo para a cena dos falantes da língua portuguesa.

 

Escreves canções como “Não”, que é carregada de crítica social e política. Encaras a tua música como forma de resistência?

 

Viver de música é resistência. A “Não” foi uma dessas canções que nasceu no meio do processo, pela necessidade de protestar sobre o que acontecia em um Brasil completamente polarizado politicamente, onde tudo isso se via de maneira muito amplificada pelas redes sociais, bombardeadas pelas chamadas “fake news”, onde você via amigos de infância se degladiando, assim como parentes xingando uns aos outros. Todo mundo querendo ter razão, pouco conhecimento político até então e muito falso moralismo e a suposta arrogância que transparece pois a pessoa talvez se sinta protegida atrás da tela do computador e acaba tendo coragem de dizer o que não diria pessoalmente. O que pode ser uma armadilha muito perigosa, tendo em vista o valor da palavra escrita em comparação com aquilo que se fala. Eu acho que, como artista, é importante sim posicionar-se, pois a arte está ali para incomodar,  abrir outras janelas para o pensamento crítico e outras soluções possíveis, além do convencional, do conservadorismo e dos falsos moralismos vigentes, que tentam cada vez mais  simplificar as opiniões e classificar as pessoas dentro de suas caixinhas, esquerda, direita, religioso, ateu, etc… A arte está ali pra lembrar que somos seres humanos complexos, cheios de falhas, inseguranças e problemas com o próprio ego, o auto-conhecimento e a forma de existir.

 

Quais são as tuas influências musicais? Ouve-se uma grande mistura de géneros no teu novo álbum “Sêmente”. E ainda, de onde veio a ideia para este título?

 

As influências começam em minha terra natal, berço da música sertaneja de raiz, passando pela rebeldia do rock na aborrecência, o folclore e a música nordestina que foi uma grande inspiração e descoberta da tenra juventude. Logo o interesse pela bossa nova e o jazz despertados nos primeiros anos na Europa e através da curiosidade de saber como as outras culturas vêem nossa música. Sou influenciado ainda pela música flamenca da Espanha e, a música clássica e eletrônica na Alemanha. Outras influências são ainda a música africana, do oriente-médio ou mesmo rock inglês e afins…também sempre gostei muito de ouvir rádio, diga-se de passagem. O título do álbum vem de Sê - mente de ser consciente de plantar ações e ideias - semear atos e atitudes.

 

Uma das canções do novo álbum, “I don´t want to be one more”, é uma colaboração e a única cantada em inglês. Como surgiu esta colaboração?

 

Essa música foi  uma das primeiras que fiz em inglês e por isso a vontade de internacionalizar o disco, sendo uma canção fácil de ser cantada e que funcionou ao vivo desde as primeiras execuções. Quando vi o projeto de reggae dos meus conterrâneos da Reggae Club, que são amigos de longa data e que sempre admirei, não tive dúvidas e perguntei logo ao meu amigo Eduardo Machado, que sempre me acompanhava nas aventuras musicais desde os primórdios, e lancei a ideia de fazer a co-produção Brasil – Alemanha. Ele topou, botou pilha na galera, tivemos ainda a sorte de ter como produtor outro conterrâneo, o Tadeu Patola (produtor e guitarrista da banda Charlie Brown), fiz a pré-produção aqui, eles gravaram a banda base e os vocais em Sampa, e nós finalizamos por  aqui com vozes, percussão, mix e master, além de registrar tudo numa espécie de making-off que foi lançado como single número 2 do disco.

 

“Sêmente” está disponível em todas as plataformas digitais, tal como na página oficial do artista. Encontra-se ainda disponível em formato CD e vinil, cuja arte da capa é da autoria da ilustradora luso-alemã Kim Schädlich. Daniel Arruda prepara-se para o futuro e já falou da possibilidade de o próximo concerto ser através de um live num meio digital. O músico foi o terceiro de um total de 100 artistas a partilhar um video-relato através do Festival Roda Viva e deixou o apelo: “Vamos pensar como é que a gente vai viver daqui para a frente quando essa crise passar. Alguma coisa tem que mudar”. 

 

“Roda mundo, roda gigante

Roda moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração…”

 

E, numa nota mais alegre e carregada de esperança, fica-nos no ouvido o pequeno trecho da música “Roda Viva” de Chico Buarque, que Daniel cantarolou no curto vídeo.

Mariana Lima

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Mariana é fascinada por línguas e expressões idiomáticas. Tradutora de profissão, tem um espírito de curiosidade aguçado. Por vezes sente-se culpada por não aproveitar melhor a oferta cultural da cidade. Chama casa a Berlim desde 2014. 

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