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“Para os alemães sou muito português, em Portugal sou muito estrangeiro” - Entrevista a Carlos Bica

Carlos Bica (c) Promo.jpg

25/07/2019

Foto: ©Promo

Músico e compositor, Carlos Bica é conhecido pelo seu Trio Azul, composto por Frank Mobus e Jim Black. Com eles editou os álbuns “Azul” (1996), “Twist" (1999), “Look what they've done to my song” (2003), “Believer” (2006) e “Things About” (2011). Mas o seu percurso musical começou bastante antes. Chegou à Alemanha com uma bolsa de estudo, e, para além da música, aprendeu também um novo idioma: o alemão. Programou o regresso a Portugal, mas os desafios profissionais acabaram por tocar mais alto e vive actualmente em Berlim.

 

No dia em que fez  61 anos, Carlos Bica recebeu o Portugal Post em sua casa, no centro de Berlim, onde nos falou sobre a sua carreira musical de mais de três décadas anos e do novo projecto deste que é “um dos valores mais sólidos e consistentes do jazz nacional” segundo a revista jazz.pt. 

Os alemães acham-no muito português, os portugueses consideram-no muito estrangeiro, mas no mundo do jazz ele fala qualquer idioma. Desta feita, Carlos Bica (contrabaixo) juntou-se a Daniel Erdmann (saxofone tenor) e DJ Illvibe (gira-discos) e lançou um novo álbum:  “I Am The Escaped One“, recentemente editado pela editora Clean Feed e apresentado a 22 de Julho no B-flat.

 

 

São muitos os projectos que já integraste ou ainda integras, o “Trio Azul”, talvez o mais conhecido, já conta mais de 25 anos. No ano passado, agarraste um novo desafio com os alemães, Daniel Erdmann, saxofonista, e DJ Illvibe. Lançaram no dia 22 deste mês o primeiro disco “I am the escaped one”. O que é que este álbum traz de novo?

Enquanto músico e artista, o que se procura é sempre voltarmos a descobrir-nos. O que é que este álbum traz de novo? Em primeiro lugar, é uma formação muito invulgar (risos). Saxofone, contrabaixo e o artista que está por trás do gira-discos. Para um primeiro ouvido é capaz de ser uma coisa um bocado estranha. Mas ouvindo uma segunda vez, eu reconheço-me lá completamente, o álbum tem a minha assinatura. E é isso que me deixa feliz, perceber que, mesmo procurando outras sonoridades, me encontro lá, nessa música.

 

É a primeira vez que partilhas um projecto com um DJ?

O DJ Illvibe já tinha participado num disco do ‘Azul’, no ‘Believer’. Eu convidei-o para entrar no disco, foi a uma decisão espontânea, depois de o ter ouvido aqui em Berlim. O seu nome é Vincent von Schlippenbach e é filho do Alexander von Schlippenbach, que é um dos grandes nomes do jazz alemão, sobretudo na área do ‘free jazz’. Por sua vez, a sua madrasta é a pianista de jazz Aki Takase, pianista de jazz. Já toquei com ambos e conheci-o como o miúdo que andava aqui por Berlim, a pintar graffiti. Foi um jovem que tocou trompete, tocou bateria, mas sem nunca se ter dedicado completamente. Mas a veia musical estava lá desde o início. Depois descobriu o gira-discos e o potencial infinito que aquilo tem. E eu realmente não conheço ninguém como ele. Vi-o num concerto a tocar com o pai e fiquei impressionado. Ia gravar o ‘Believer’ e fiz o convite para ele aparecer em estúdio. Esteve lá quatro horas, gravámos cinco músicas e foi incrível. Cheguei a dar concertos até mesmo em duo com ele. E agora esta oportunidade surgiu novamente porque tinha um concerto marcado na Culturgest que inicialmente era para ser em duo, mas depois foi-me feito o convite para alargar a formação e para o concerto ser na sala grande, e ocorreu-me logo o nome dele.

 

Apresentaste este novo disco pela primeira vez em Portalegre, no “Portalegre Jazz Fest”. Escolher Portugal para esta apresentação foi propositado?

Foi por mera casualidade, pelo disco estar a sair e de haver esse convite para tocar no festival de Jazz de Portalegre. Na área em que me movimento não existe o marketing que existem nas outras, por isso há que jogar com as oportunidades (risos).

 

Disseste, numa entrevista à agência Lusa, que esperavas surpreender o público. Conseguiste-o?

Foi excelente. Acho que foi um grande concerto. Até mesmo para o produtor da editora discográfica, ele próprio ficou surpreendido porque já tinha ouvido o grupo e achou que tínhamos passado para um novo nível.

 

Já assumiste que um dos momentos mais importantes da tua vida foi conseguir uma bolsa para estudar na Alemanha. Se não tivesse svindo, esse “atraso” de que já falou, podia tê-lo condicionado?

É sempre difícil especular como é que a nossa vida seria se não tivesse acontecido determinadas coisas (risos). Eu estou em crer que teria encontrado o meu caminho, mas claro que estou grato por ter vindo e sei que a música que eu faço é um resultado disso mesmo, de viver aqui na Alemanha. Para os alemães eu sou muito português, para os portugueses eu sou muito estrangeiro (risos). O que é que um artista tem de fazer? Assimilar o que o rodeia e transformá-lo, e, no fundo, a música que eu faço é um resultado disso mesmo, das minhas vivências.

 

Viajas muito entre os dois países. De Berlim dizes que foi “amor à primeira vista”, de Portugal não dispensa as idas à Zambujeira do Mar. É difícil estar sempre entre os dois países?

Felizmente entre a Alemanha e Portugal a distância é curta, é fácil de fazer. Já se tornou algo habitual andar cá e lá. Mas, até agora, continua a ser bom e produtivo.

 

Volta a apresentar-se no B-flat no dia 22 de Julho, local que frequenta com alguma regularidade e onde parece sentir-se em casa. O que é que este espaço tem de tão especial?

O B-flat fica aqui a algumas centenas de metros de minha casa (…) e já deve ter mais de 20 anos de existência, o que coincide com a minha chegada a Berlim. Foi um espaço que me acompanhou desde que eu vim para cá e passou a minha stammkneipe. Era um local que vsitava muitas vezes quando queria beber uma cerveja e tal. Muitas vezes ia sem saber bem o que estava a acontecer musicalmente, e era surpreendido pelos mais diferentes géneros musicais. É algo que me agrada, ser surpreendido, e não necessariamente na área do jazz, mas com alguém que está a fazer algo de pessoal e diferente. Por isso é um clube pelo qual tenho uma amizade especial.

 

Em Portugal, um dos locais mais conhecidos do jazz é o Hot Club em Lisboa. É uma cena um pouco diferente ou há outros espaços alternativos? 

Entretanto já nasceram alguns espaços diferentes. Não estou completamente a par dessas novas locations que aparecem em Lisboa, mas sei que existem uma série de espaços mais pequenos. Mas o Hot Club também já não é o talvez tenha sido em tempos, um sítio onde se podia tocar mainstream e standards. Entretanto já é um espaço as músicas diferem muito, consoante as formações e os músicos. 

 

De onde vem o nome do álbum, “I am the escaped one”?

É um poema do Fernando Pessoa escrito em inglês. Eu digo sempre que o sucesso é quando as coisas acontecem sem terem sido muito preparadas. No fundo é aquela coisa, nós estarmos no caminho certo e depois as coisas acontecem. Neste caso, esta formação surgiu de uma forma muito orgânica, até ao título e à foto de capa do álbum. Quando disse ao Daniel Erdmann que tínhamos de encontrar nome para o disco, ele comentou que tinha descoberto Pessoa. Deu-me várias frases que tinha retirado de textos de Pessoa, mas não achei nenhuma apropriada. Mas quando estava na fase final de busca, na Zambujeira do Mar, pesquisei na internet e apareceu-me logo o nome e disse: é este mesmo! (risos)

 

Berlim continua a ser uma cidade amiga da arte e da criatividade. O que te trouxe até cá? 

Bem, eu vim para a Alemanha com a bolsa de estudo, que foi depois prolongada... Na altura era muito difícil sair de Portugal e eu estava aqui com condições excelentes, com uma bolsa óptima. Vim para a Alemanha em Outubro de 81. A primeira fase da bolsa foi seis meses de alemão, com cinco horas diárias de aulas de alemão. O que foi óptimo, porque eu, que não falava nada de alemão, ao fim de dois meses já conseguia ter uma conversa. Era condição necessária saber a língua para depois começar a estudar. No ano em que acabei os estudos fiz a primeira tourné aqui na Alemanha com a Maria João. Tinha-a conhecido pouco tempo antes e tinha-a desafiado para vir aqui até à Alemanha. Ela ainda era uma cantora completamente desconhecida e tivemos uma primeira turnê com 25 concertos em 5 semanas. Mas eu sabia que estava naquela fase de transição de estudante a músico profissional e que queria fazer outras coisas, outras músicas. Foi duro porque me tinha que preparar para o exame e um mês antes estava eu a viajar em tourné sem tempo para estudar. Depois tocámos imenso na europa, quase 10 anos. Depois houve uma altura que pensei: já chega de Alemanha, vou voltar para Portugal, e foi quando o Frank Mobus, guitarrista do trio Azul, me disse que tinha que vir a Berlim. (...) 

 

Já se conheciam? 

Ele é de Nuremberga e tinha ido tocar a Wurzburg e nessa altura estava a estudar em Boston. Fizemos algumas sessões em casa dele, em Nuremberga, onde conheci o Jim Black, que tinha sido colega do Frank em Boston. Pronto, o Frank veio morar para Berlim, desafia-me para vir cá, que isto está bestial, que estão a acontecer imensas coisas… e assim foi. Era uma Berlim completamente diferente, como vocês devem imaginar. Eram aqueles anos logo a seguir à queda do muro. E eu vim desde o início aqui para o centro de Leste. E realmente estava em ebulição, eram as casas ocupadas, havia festas em todo o lado, super improvisadas, djs por todo o lado. Foi uma altura muito gira, não só por haver festas, mas por ser muito criativa. Tive a facilidade de arranjar casa e, sendo assim, decidi ficar até ver. E entretanto ainda cá estou (risos). 

 

Achas que essa ebulição dos anos 90 e esse espírito ainda existe hoje?

Acho que o espírito Berlinense ainda se mantém. Apesar de a cidade se ter transformado, acho que há esse espírito irreverente. Entretanto é uma grande cidade, cosmopolita, e que atrai gente de todo o mundo. Já perdi a conta do número de músicos que entretanto aqui há… está sempre a ser renovado, alguns ficam, outros vão embora. Ao mesmo tempo existe uma tendência, como todas as grandes cidades cosmopolitas, a ser engolida pelo capitalismo, diria eu (risos). Tal como aqui um bar que existia há 50 anos agora é uma loja de jeans... Há uma tendência a ser engolida pelo sistema. 


 

E como acompanhas essa questão? Há um papel da parte dos músicos em apelar à conservação desse património ?

Sim, claro que existe. Mas é uma luta difícil. Ainda ontem, tínhamos estado a jantar no Clarchens Ballhaus, e ouvi dizer que tinha sido comprado por um investidor e que ia desaparecer. Pronto… daqueles sítios que são instituições… E a mesma coisa com o B-flat, que teve que ir para um novo espaço porque o senhorio disse que tinham que sair. E o que é aquilo agora? É uma loja daquelas coisas que uma pessoa não precisa (risos). Mas para o senhorio deve dar garantias óptimas, de poder pedir aquilo que eles querem... É daquelas coisas que a cidade é que tem que fazer algo para controlar. Porque senão é sempre o dinheiro que manda. 

 

O jazz é muito colaborativo e tu tens experimentado várias colaborações. Como é que elas surgem? Há alguém com quem gostasses de vir a trabalhar e quais te deixaram as melhores memórias? 

Normalmente não existe uma procura, as coisas aparecem naturalmente. Há músicos que põem discos cá fora com uma facilidade incrível. Eu prefiro deixar uns anos pelo meio e depois editar qualquer coisa que me deixe feliz. Uma característica minha é essa abertura para músicas mais diferentes, desde sempre. Não me vejo completamente limitado. Claro que existem determinados géneros musicais que dão mais liberdade. Por exemplo, a minha colaboração com o fado foi uma coisa que surgiu naturalmente e aconteceu há 30 e tal anos. Foi com o Carlos do Carmo, num disco produzido pelo José Mário Branco. Ambos amantes do jazz e do contrabaixo, lembraram-se de colocar o contrabaixo em vez da viola-baixo.  Na altura também havia poucos baixistas acústicos bons e tinham ouvido falar de um jovem contrabaixista e lembraram-se de me convidar. Eu caí lá assim um bocadinho de pára-quedas no estúdio. E o fado para a minha geração era ainda aquela coisa que os avós ouviam. Mas estando lá em estúdio com os músicos, António Chainho, José Maria Nóbrega foi uma experiência incrível. Para mim aquilo era como se fosse jazz, a maneira como eles estavam a tocar e a improvisar. A maneira como eles estavam a tocar era de uma grande criatividade. Curiosamente, mais tarde, fui convidado pelo Camané, e nos discos dele sou sempre eu que toco contrabaixo. Ele, grande fã do Carlos do Carmo, optou por usar o contrabaixo. Curiosamente, entretanto o contrabaixo passou a ser um instrumento de fado. Agora qualquer casa de fado agora tem um contrabaixista Os louros não são para mim, mas é um facto que eu fui um o precursor disso, de alguma maneira. O caminho faz-se andando e o fado é inspiração e a música erudita também. Toco também num quarteto de cordas, o Move String Quartett. É um quarteto de música de câmara, onde também há espaço para improvisação. É isso que eu gosto, de poder abrir o leque de hipóteses musicais, sempre com seriedade e honestidade. 
 

Achas que a Alemanha trata melhor a música os músicos?

Acho que trata melhor a cultura. Sim, diria que é isso. 

 

Achas que pessoas mais educadas e procuram mais a cultura? Há maior educação para a cultura?

A cultura está há mais anos mais presente no dia-a-dia das pessoas. As pessoas que vão a um concerto numa igreja não são de uma elite cultural, mesmo em cidades pequenas. Ou seja, vão assistir a um concerto de música erudita na igreja, mas não são pessoas de uma classe social mais alta, são pessoas do povo. E isso já acontece na Alemanha há vários anos, coisa que em Portugal não acontece.

Entrevista conjunta PT Post - Berlinda - por Ana Sousa Dias, Tiago Pinto Pais e Rita Guerreiro

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