MAGAZINE

O ‘Batuque’ que une três continentes
Foto: Esquerda - A dupla Dubio e João Xavi © Tai Linhares. Direita © Ana Vaz
Dupla de DJs desvenda os rastros sonoros da diáspora africana.
Em um estúdio improvisado num “Hausprojekt” em Berlim-Friedrichshain, dois DJs acertam os últimos detalhes para a gravação de um programa de rádio. “Você trouxe o adaptador?”, pergunta um deles enquanto inspeciona os cabos. “O gajo esqueceu”, responde o outro depois de vasculhar a mochila. A vinheta, um mashup de Fela Kuti com Mussum dos Trapalhões dizendo “Cacildes!”, indica o início do programa “Batuque Low-fi”. Na sequência de Nara Leão e Rage Against the Machine, entram no ar os apresentadores do programa saudando os ouvintes pelo mês de maio, mês do trabalhador.
O “Batuque Low-fi” é um projeto musical e filosófico 100% analógico realizado por João Xavi, brasileiro de São João de Meriti-RJ, e Dubio, português de Aveiro. Juntos eles tocam “música da Diáspora”, em outras palavras, música popular brasileira, afrobeat, soul, jazz, reggae, samba e, por que não, funk, em sua vertente norte-americana e carioca, “sem preconceitos”. A dupla radicada em Berlim toca desde julho de 2013 em festas e festivais na cidade e também fora dela. O programa de rádio começou a ser transmitido em 2014 na Stress.fm, e a partir de maio de 2015 também na Kellerwelle.com, ambas rádios online.
Após a gravação do programa de rádio #10, o “Batuque Low-fi” conversou com a gente sobre o componente político de seus sets e como promovem uma crítica ao colonialismo através do legado musical africano. Para além das rixas históricas entre Brasil e Portugal, os Djs indicam pontos de contato entre as culturas e sinalizam a necessidade de um espírito colaborativo, longe de qualquer tentativa de dominação e subjugação.
Você pode ouvir na íntegra a entrevista no podcast “Contagota”, ou ler a entrevista abaixo.
Berlinda (B): Como vocês se conheceram e como surgiu a ideia de tocarem juntos?
João Xavi (J): A gente se conheceu em um curso de alemão.
Dúbio (D): Quer dizer, vou ter que interromper. Começou um bocadinho atrás. Eu vi o João dar um concerto e fiquei de olho…
J: Começou a me paquerar!
D: E mais tarde nos encontramos no curso.
J: Através de um comentário que fiz no curso ele percebeu quem eu era. Daí começaram as conversas sobre música e o interesse por vinil… foi assim.
B: Que linda estória de amor! Me expliquem agora: por que tocar com vinil?
D: Essa é uma pergunta que nos fazemos sempre que temos que carregar os vinis.
J: É pra provar que a gente é forte. (risos)
D: É essa paixao pelas coisas antigas, neste caso pelo vinil, pela qualidade de som, pelo objeto em si e por viver as coisas em um outro ritmo.
J: As 33 rotações e meia, ou 45. É uma coisa meio romântica mesmo, não tem explicação racional. Muitos dizem que o som do vinil é melhor do que o de outras mídias. Eu acho que sim, mas não tenho nenhuma comprovação técnica quanto a isso. E tem uma coisa do fetiche mesmo, porque a música do vinil é quase uma conquista. Você tem que procurar o vinil, por isso tem a expressão “digging”. Tem que ir cavando até encontrar a pepita, o diamante.
B: E qual vinil vocês têm há mais tempo?
J: O meu é um vinil do Racionais Mcs, Raio X do Brasil, que é de 93. Eu comprei assim que saiu, em uma loja de São João de Meriti que se chamava Lojas Brasileiras.
D: A cena do vinil é mais ritual, de pôr a agulha em cima do vinil, escolher a canção e virar o disco. Uma coisa que com o MP3 não me dá tanto gozo.
B: E esse nome, Batuque Low-fi, tem ligação com a música que vocês tocam?
J: É uma brincadeira com o “hi-fi“, que é alta fidelidade e tem a ver com os tempos de hoje, em que a imagem tem super definição, tudo é perfeito. E o vinil tem esse charme, o que a gente chama de “ovo frito”, aquele chiadinho. A gente gosta disso porque é um reflexo do que é a vida real, imperfeita e ruidosa.
D: E também em nível de música, muitas coisas que nós passamos na nossa festa foram produzidas há épocas atrás e não existem em MP3. Em relação ao “batuque”…
J: No Brasil essa palavra sintetiza tudo o que é percussivo, a música negra.
D: Em Portugal também.
J: Bom saber. (risos)
B: Como vocês escolhem o repertório que vão tocar nas festas?
J: É uma coisa curiosa, porque na maioria do tempo a gente toca junto. Na gíria dos Djs se chama “back to back”, cada um toca na sequência do outro uma música. E isso é um desafio a parte.
D: É como um diálogo. Um põe uma música e o outro está na expectativa para saber o que vai colocar a seguir. Então é um gozo, é feito com espontaneidade e não temos um „set” definido à partida. Depende também se a festa tem um conceito, então fazemos uma eleição dos vinis que tenham a ver. Mas o que vamos colocar tem a ver com o diálogo que estávamos a falar antes.
B: E toda música pode ser low-fi?
D: Não, nós temos o conceito de que “Batuque Low-fi” é toda música que está de alguma forma relacionada à África e tem ligação com a diáspora, independente se foi produzida na Europa, no Brasil ou na América do Norte. Então pode ser Afrobeat, Funk…
J: O “Batuque” pode ser qualquer coisa que tem relação com a África, aí cabe o Funk, o Dub, o Soul, o Samba, o Reggae, a Tropicália e até a música eletrônica.
D: Porque em termos temporais nós também não definimos.
B: Falando de colonização, descolonização e pós-colonialismo. Como podemos inserir a música que vocês tocam em um contexto histórico?
J: A gente aprende na escola o que foi colonização e escravidão. A música nos dá a possibilidade de ter uma outra percepção sobre o que foi isso. Você imagina se o europeu tivesse ficado só na Europa e o africano só na África? Não estou dizendo que a escravidão foi uma coisa boa, obviamente que não, mas movimentou o planeta. E as pessoas quando vão de um lugar pro outro levam dentro delas o que elas são, incluindo a música, a forma de cozinhar e de dançar.
D: Através da música tentamos passar essa mensagem. Esse “melting pot” que existe, em que ao mesmo tempo que influencia é influenciado. Existem alguns clichês. Quando se fala de África, por exemplo, não estão à espera que lá se faça funk, espera-se que façam apenas música tradicional africana.
B: Isso é importante ressaltar, como a música que é feita nas Américas e em outras partes do mundo influenciou a música que é feita na África hoje, por exemplo.
J: O Fela Kuti é um exemplo interessante. Ele foi um nigeriano que teve parte da sua formação musical na Inglaterra, tocando Jazz e o tal do “highlife”. Ele diz que na Inglaterra ele recebeu uma influência muito forte da música caribenha, que é uma música negra. É a África que está no Caribe há 500 anos, que vai pra Londres dos anos 60 e influencia um nigeriano.
B: Exato. A música mais popular no continente africano hoje é a música jamaicana: o Reggae e todas as vertentes derivadas dele. E o que seria o kuduro, senão um ritmo influenciado pelo funk carioca?
J: Se olhar o dance africano… A origem desse tipo de música é Chicago, Detroit… Mas os primeiros caras que fizeram isso eram negros também. Há sempre uma realimentação.
D: Muitos músicos que nós pomos são politicamente muito ativos e participaram de movimentos anticolonialistas. O Fela Kuti na Nigéria teve um papel importante, não só a nível musical, mas no campo da ação social e política. Não só na festa, como também no blog e no Facebook, temos esse cuidado de não ser só música, mas passar também um conceito filosófico.
J: E deixar se inspirar um pouco pelos momentos também. Às vezes leio uma notícia e penso: “hoje tenho que tocar determinada música”. A música é um elemento vivo e está sempre em processo, a gente tenta traduzir isso através dos toca-discos.
B: Pensando em Brasil e Portugal, vocês acham que há alguma linha que una os dois povos socialmente e culturalmente?
D: Acho que o primeiro já está aqui definido, estamos os dois aqui a falar…
J: Mais ou menos a mesma língua. (risos)
B: E além da língua?
D: Há uma história em comum e, a nível cultural, há ainda muitas influências tanto de um lado, quanto do outro. Eu diria que em Portugal, a nível cultural, o Brasil tem bastante influência.
J: No Brasil a gente tem muitas piadas sobre Portugal e português. Existe uma espécie de negação desse processo colonial, uma certa rixa. Mas se olhar a fundo, o quanto de influência portuguesa na cultura brasileira existe e que as pessoas não fazem a menor ideia! O pandeiro, que todo mundo vê hoje como instrumento extremamente brasileiro e tradicional do samba e do negro, é uma coisa portuguesa. Assim como os tambores, que são usados nas festas do nordeste e que depois geraram o maracatu. Tudo isso tem uma coisa muito ibérica, mas não se fala muito sobre esse tema.
D: Vejo nas pessoas que eu conheço uma influência brasileira muito grande, seja a nível musical, literário ou linguístico. A comunidade brasileira em Portugal também é relativamente importante, assim como são a de Angola e Cabo Verde. Então passamos a estar sempre em contato com essa realidade.
B: A gente pode falar de uma inversão de papéis na dinâmica colonizadora, em que hoje o Brasil influencia muito mais Portugal do que o contrário?
D: Eu prefiro não falar nesses termos. Isso historicamente existiu, mas o processo colonizador pra mim é algo negativo. Eu vejo o que acontece hoje de modo mais positivo, de ir absorvendo e tendo contato com realidades que tu gostas, mas não em termos hierárquicos. Temos que ressaltar o que há em comum, o que te atrai e o espírito crítico também.
J: Teve uma coisa que passei a entender melhor quando vim viver na Europa. Pela minha história de vida e constituição da minha família eu sempre imaginei: eu sou afrobrasileiro, afrolatino. Eu ignorava o que existia de Europa na minha pessoa. Convivendo muito com os africanos, percebi que o brasileiro não é nem europeu e nem africano, é outra coisa. Existe um triângulo com uma ponta no Brasil, uma ponta na Europa, com a inegável influência de Portugal, e a outra ponta na África. É uma coisa complementar que vive dentro das pessoas, sem hierarquia.
B: Seria Berlim o lugar onde essa tomada de consciência seria possível, uma espécie de espaço neutro entre essas culturas que influenciaram umas às outras? Qual é o papel de Berlim nesse processo?
D: Berlim é uma cidade onde é possível o encontro com diversas culturas, mas deve acontecer o mesmo no Rio de Janeiro e em Lisboa. Mas a diferença pra mim seria a possibilidade de, além disso, poder expressar esse encontro em termos musicais, através do Batuque. Berlim está mais aberta a essas outras culturas do que outros sítios.
J: Mas é interessante ser um terreno neutro, que não estamos nem em Portugal, nem no Brasil e nem em Angola. Mas por outro lado, o fato de eu ser brasileiro e o Marco português e nós fazermos esse projeto juntos é quase um acaso. A nossa interação maior não aconteceu por uma questão de identidade cultural ou pela língua, foi mais uma identificação pessoal, musical e por ideias. Eu poderia ser sueco, dinamarquês, japonês ou chinês, apesar de não parecer com nada disso, mas a coisa ia acontecer da mesma maneira. A língua ajuda na comunicação do dia a dia e torna tudo mais engraçado.
B: A possibilidade de fazer piadas que não seriam entendidas por alguém de outra língua ou até um certo background cultural mais parecido. Isso tudo faz diferença…
J: E até as diferenças que existem entre a forma de falar o português nos dois países.
D: Sim, ajuda, mas o principal é o fato de nos identificarmos um com o outro.
B: Qual é a reação do público à música que vocês tocam?
D: Berlim é neutro pra umas coisas, mas não pra outras. Em geral as pessoas dançam e gostam. Há pessoas que já conhecem as músicas que nós pomos e se identificam, mas há outras para as quais o que tocamos é algo novo. No entanto, o feedback é quase sempre positivo. Embora Berlim seja uma cidade da música eletrônica…
J: Mas a gente sempre ouve as pessoas dizerem “que bom que hoje não é techno”, como a gente também escuta “você não tem um disco do David Gueta aí?”. (risos) Tem um pouco de tudo, mas faz parte do esforço da gente para não se fechar dentro de um gueto. A gente não faz música só pra brasileiro ou português, a gente quer dialogar com esse universo que é Berlim.
D: E tem a ver com essa filosofia que é a diáspora, de ter contato com várias realidades e não se fechar em uma comunidade.
B: E como a gente faz pra ter contato com a realidade de vocês?
J: A gente tá aí nas redes sociais, no Facebook. Procurando por Batuque Low-fi você encontra a gente. Temos um blog, o www.batuquelowfi.net.
D: No rádio você pode acessar a Stress.fm ou a Kellerwelle, aqui de Berlim.
Entrevista: Tai Linhares


Tai Linhares
Nascida no estado do Rio de Janeiro, em 1987, é jornalista e mestre em comunicação formada pela UFRJ. Além de se dedicar à fotografia, uma de suas paixões, Tai Linhares já dirigiu um documentário, “Tear” (2014), e atuou como câmera em outras produções cinematográficas. Mora em Berlim desde 2013, onde estuda cinema documentário na Filmarche.