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Atenção - A tensão

Raízes é um grupo de teatro comunitário que surgiu como um desafio para Maria de Vasconcelos. Em novembro de 2019 viu as luzes da sala de ensaio, que mais tarde será um verdadeiro palco. O nome do grupo de remete-se ao facto de este ser de língua portuguesa e de ter florescido em Berlim. 

 

 

 

Os passos de lá fora

Os passos contados, os olhares marcados, de quem passa e de quem lá passa no lado de fora. Os passos são rápidos e certeiros, o frio obriga a cálculos precisos da energia dos corpos, pouco errantes. 

Atenção: a tensão, diz a Maria. Os corpos à volta, espalhados no chão, arrastando-se, insinuando os gestos, a manipulação das formas, dos jeitos, dos trejeitos, têm de ser coerentes com o que querem expressar, acrescenta. Este, entre um dos muitos exercícios que fazemos, faz parte das minhas quartas-feiras. Um projeto de teatro comunitário lusófono, em andamento, com uma data de apresentação marcada para meados de outubro. Somos 16, entre elas, eu e outro homem, em formas ridículas a aprender técnicas de manipulação do corpo, quantas vezes estranho, numa sala alugada de uma antiga fábrica. Em comum, temos a língua portuguesa, o facto de sermos estrangeiros e de escolhermos, ou de sermos escolhidos - nunca se sabe das intenções ocultas do universo - para cá viver.  E tudo isso é teatro, diz a Maria, mentora deste projeto, de certa forma, ativista, que pretende capacitar as pessoas individuais e a comunidade, para lidar com o mundo lá fora.


Cá dentro

 

No momento deste texto, encontro-me sentado, 4h da tarde, o breu cobre o céu, do lado de cá uma janela aquecida pela luz amarela, de um café que olha para a rua. Fui adotado por esta cidade, não sabia a princípio que vinha para ser adotado, vinha para cá viver, no máximo, por 2 anos. Trabalhava, aprendia algumas coisas novas, nesta cidade que é uma constante “brainstorming”: ganhava experiência, talvez alguma ideia luminosa, e iria para outro lugar mais calmo e mais quente. Só isso. Mas, como os filhos adotados tardiamente, em geral, também eu não suspeitei que criaria vínculos com esta nova “progenitora”. Com os passos do tempo, que não são tão fluidos como os que vejo por esta janela, a cidade tornou-se familiar. 

É-me familiar caminhar rápido como a cidade no inverno, a propósito do frio que se adentra até no temperamento das pessoas, ou de empacotar compras à pressa do tapete frenético de uma caixa de supermercado. Como me é familiar o ritmo descansado de um verão ameno, que toma uma cervejinha gelada em qualquer ponto da cidade, num parque ou depois de um mergulho num lago, sempre a 40 minutos de casa. É-me familiar o cheiro a kebap e a fragâncias corporais (nem sempre as melhores) no U-Bahn cheio e decidir por isso ir sempre de bicicleta em qualquer época do ano para o trabalho, adotando a máxima, tão alemã quanto a “curry wurst”, de que não há tempo mau, só roupas inapropriadas. Também o convívio poliglota, polifónico, multicultural, que muitas vezes é um escape a esta língua pesada, com uma estrutura gramatical, um tanto obscura quanto misteriosa, com que me deparo no dia-a-dia e com a qual luto por dominar - às vezes como guerreiro, outras como amante, que na verdade só quer compreender para ser compreendido.


Ator inconsciente

Enfim, aprendo a estar com a cidade, nas suas múltiplas facetas, a relacionar-me com ela e, se há algo que me apercebo hoje, nos exercícios deste grupo de teatro amador, é que, durante estes 8 anos em que entretanto cá vivo, tornei-me irremediavelmente um ator, à custa dos múltiplos papéis sociais que desempenho no dia-a-dia, dentro dos quais há alguns que tive de aprender mais exaustivamente à custa de estudo, observação, tentativa e erro, outros de improviso e outros, ainda, que apesar de já os conhecer, tive de reinventar. 

Tive de aprender a ser o amigo, o colega, o trabalhador, o marido e, para cada um desses papéis, tive de aprender técnicas, às vezes, completamente distintas, que às vezes em Portugal são tão diferentes, tomemos o exemplo do colega e do amigo. É comum em Portugal dispormos do mesmo afeto no cumprimento de um colega ou de uma amiga, algo que aqui Berlim me ensinou que não, Pedro, assim não dá - colega, aperto de mão, amiga, um abraço e, muito importante, não corremos tudo a beijinhos. Quanto a esses, guardemo-los para o papel de marido.

Além de tudo, há o mercado, claro. Sempre e inevitavelmente - o mercado de trabalho, razão pela acabei por ficar. É talvez, o papel de trabalhador, de todos os papéis sociais, aquele que aufere a um indivíduo o posicionamento mais ou menos privilegiado numa sociedade, não fosse, a pergunta, “o que fazes” mais valorizada numa apresentação entre dois indivíduos, que precipita a todas as outras perguntas, e que vai muitas vezes determinar se a pessoa tem interesse ou não em nós.

 


A consciencialização do ator

As linhas do palco desconstroem o ator inconsciente. A Maria sugere que experimentemos as nossas emoções. No decorrer dos exercícios, é-nos mencionado que o controlo dos pequenos sinais é tão importante como o dos mais expansivos, porque também eles são o foco de um público eclético, que se reconhece no ator, sendo que é nosso dever, enquanto tal, aprender a gerir toda toda a tensão interna e transparecer naturalidade e foco às ações que também são deles, porque este teatro pretende derrubar as quartas paredes do palco, desencaixotando tudo para a realidade, ele quer ser parte do que acontece lá fora e, lá fora, passa a ser as cenas que contamos cá dentro.

Cá dentro somos 16 pessoas, que têm trajetórias diferentes de integração num país estrangeiro, e que procuram os seus espaços nas várias dimensões da vida lá fora, quer dizer, querem para si e para os outros o mesmo, propõem-se a que haja uma troca e um diálogo, tal como novas formas de comunicar que vão muito além das barreiras da língua, da distância e do clima, e se propõem a ir mais fundo, àquilo que está debaixo do icebergue aparente. Debaixo da superfície há todos os códigos culturais, de distâncias invisíveis, na interação com terceiros, o toque, as expressões de afeto, a agressividade interna que é a forma de defesa que está mais à mão, a impaciência externalizada pelos suspiros do tipo do supermercado… Em cima do palco está mais até do que gostaria e vejo o quanto de mim no plano da dramaturgia sou eu, ou o que falta de mim lá fora, para compor as duas personagens.

Enfim, já a noite se assenta, olho pela janela e já só vejo luzes de carros desbotados pela chuva a ir embora do trabalho e que querem um fim de semana.

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Texto: Pedro Monterroso. Foto: Camile Brito Ferreira

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Pedro Monterroso

Nascido em 1984 e natural de Amarante, uma pequena cidade no norte de Portugal. Vive em Berlim, é educador de ensino especial e trabalha numa escola do ensino básico bilíngue. É formado em Sociologia e esta ciência é um dos seus maiores fascínios, mas tem muitos outros. Como escrever. Tem um blog próprio desde 2014, Publicou um livro de poesia, com a ilustração da ilustradora e amiga Ruiting Zhang (Metáforas que me ensinam a pescar) e está à procura de publicar o seu próximo projeto.

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