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“Este filme não foi preparado numa semana, vem de uma relação de 10 anos" I Susana Nobre em entrevista

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30/03/2021

Imagem: ©Terratreme Filmes

Em conversa com o PT Post/ Berlinda pela internet, a realizadora portuguesa Susana Nobre falou-nos do seu novo filme “No Táxi do Jack”, seleccionado na secção Forum do 71. Festival de Berlim, cuja primeira parte teve lugar de 1 a 5 de Março (a segunda parte está marcada para 9 a 20 de Junho de 2021). Um filme íntimo, que gira à volta da história de Joaquim Calçada, a sua vida de emigrante nos EUA e o seu regresso a Portugal. A data de estreia no país ainda é incerta. “Eu gostava que estreasse perto da Berlinale”, diz-nos a realizadora.

Resta esperar que, após a passagem por Berlim, “No Táxi do Jack” acelere a fundo e chegue também, sem grandes engarrafamentos, às salas portuguesas.

 

Parabéns pela seleção de “No Táxi do Jack” no Forum da Berlinale. Apesar do contexto um pouco fora do comum, quais as tuas expectativas sobre esta participação na Berlinale?

 

Susana Nobre: Foi assim tudo muito surpreendente, porque, na verdade, entregámos uma cópia de trabalho... eu ainda estava muito às voltas com o filme, foi uma montagem muito trabalhosa e obstinada. Já não estava à espera sequer do festival seleccionar o filme, foi uma enorme surpresa. Depois tive que pôr um ponto final na montagem, ainda estive a trabalhar até à última hora a afinar algumas coisas. Esta montagem foi um processo muito vivo.

Acima de tudo, estou com aquela sensação muito boa de conseguir chegar a um bom porto e conseguir terminar bem o filme. Acho que foi por um fio, o filme esteve quase a fugir-me das mãos. Foi um filme muito difícil de fazer, e agora estou muito contente com esta sensação de trabalho feito.

 

Porque é que dizes que o filme estava a fugir-te das mãos?

 

SN: Porque eu queria, desde início, fazer um filme que tivesse a ver com esta ideia de trabalhar esta memória do Joaquim. Uma memória que, no filme, criasse este território entre América e Portugal nas várias épocas e temporalidades que ele atravessa: nos anos 60 em Portugal, a vida dele na América, e depois quando retorna. Uma espécie de filme-atlas da vida do Joaquim, mantendo a mesma fluidez, sem ter que marcar as passagens, como se fosse tudo o mesmo poema, a mesma música. Eu não sabia como é que as coisas iriam funcionar e se iria encontrar forma de articular todas estas camadas de tempo e geografias…

 

Mas parece que resultou. E já conhecias o Joaquim? Como é que esta colaboração se proporcionou?

 

SN: Conheci-o no programa “Novas Oportunidades”, no qual trabalhei durante cinco anos. Fui para lá trabalhar para fazer um filme. Trabalhei como técnica nos chamados processos RVCC - Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, que estiveram aí muito na berra numa dada altura. Conheci o Joaquim quando estava no atendimento no Centro.

Ele vinha do Centro de Emprego, desempregado, tinha acabado de pôr os papéis para receber o subsídio, e de lá mandaram-no para o Centro de Novas Oportunidades, porque ele não tinha a escolaridade obrigatória. Então essa era uma prática que na altura estava a ser aplicada, que era, quem não tivesse a escolaridade obrigatória e estivesse para receber subsídio de desemprego, tinha que se inscrever nas Novas Oportunidades para aumentar o grau académico. Tudo isto se passa durante a crise de 2008, crise económica e financeira que atingiu muita gente. Na verdade, o filme começa com a re-criação desse nosso encontro, não propriamente no Centro de Novas Oportunidades, mas no Centro de Emprego.

 

Daí teres aquele pequeno papel no início do filme?

 

SN: Sim, sim. E pronto, depois foi uma relação de anos, continuámos a dar-nos, o Joaquim entrou em mais dois filmes meus em pequenos papéis. E chegamos a este filme que é a história dele, a sua biografia.

Outros dois filmes teus, “Vida Ativa” e “Provas Exorcismos” também focam o tema do trabalho, uma reflexão que já iniciaste há algum tempo, não é?

 

SN: “Vida Ativa” foi mesmo um filme que fiz a partir das entrevistas e feitas nas minhas sessões de trabalho nas Novas Oportunidades. Pronto, foi o filme que foi possível fazer a partir da minha secretária do atendimento. Depois o “Provas Exorcismos” já é um filme que tenta ir ao encontro de um certo impulso ficcional que esse contacto com as pessoas e a escuta das suas histórias de vida proporcionou.

 

Porque é que este tema do trabalho te é tão caro?

 

SN: Teve mesmo a ver com a experiência de ir para o Centro de Novas Oportunidades trabalhar. No período da crise, havendo todas estas regras da procura activa de emprego, e com as obrigações que as pessoas que estavam a receber subsídio tinham de estarem ali inscritas, eu tinha dias que chegava a fazer 7 ou 8 entrevistas. E todas implicavam a escuta destas histórias de vida, contadas dessa perspectiva dos trabalhos que as pessoas tiveram.

Eram discursos extremamente físicos e eu muitas vezes sentia-me quase transportada para aqueles locais onde as pessoas trabalhavam, para o como é que elas resolviam os seus problemas, os seus dilemas de vida… Apesar de eu pertencer à instituição, eram conversas que tinham uma dimensão íntima, de uma exposição quase confessional. Os próprios formulários tinham perguntas interessantes e despoletavam narrativas, e penso que isso me começou a ligar muito a esse universo operário e do mundo do trabalho e de como é que as pessoas iam, de certa forma, organizando as suas vidas.

 

Como é que esta narrativa é criada e trabalhada?

 

SN: Foram muitas conversas que nós tivemos, passámos muito tempo juntos. A maior parte dos textos são coisas dele, que escrevi com ele. Algumas foi o Joaquim que escreveu sozinho, que eu lhe pedia, era uma espécie de trabalho de casa. E pronto, ele é mesmo um bom narrador. Naturalmente conta muitas histórias sobre a vida dele, tem óptima memória e é muito conversador. E partiu desse contacto. Este filme não foi preparado numa semana, vem de uma relação de 10 anos.

 

O Joaquim é uma personagem por si só. Não sendo um actor profissional, como é que é que correram as rodagens? Houve muito trabalho de direcção de actores?

 

SN: Sim, ele foi tratado como um actor, completamente. E, aliás, era bastante disciplinado, tinha muita noção da sua imagem. E de quando as coisas corriam bem, ou quando não corriam bem. Foi muito engraçado perceber isso. Também tinha limites diferentes de um actor, ou seja, tínhamos que gerir um pouco aquilo que lhe estávamos a pedir. Eu percebi que ele tinha uma resistência até um certo ponto, depois já não valia a pena insistir. Às vezes embatíamos também. Somos muito amigos, como é obvio, mas ele não estava à mercê de qualquer coisa, nem pensar. E ainda bem, ou seja, ele protegeu muito bem como queria aparecer. Ele tem muita noção disso. Ele ensaiou-se muito.

 

Ele já viu o resultado?

 

SN: Ele viu uma versão de trabalho, mas ainda não viu o filme final.

 

E porquê o título “No Táxi do Jack” e não “No Táxi do Joaquim” por exemplo?

 

SN: Pois, não sei… acho que era mais esta questão primordial do projecto de misturar as duas geografias. De ter o táxi, de ter um nome português e um nome inglês na mesma frase.

Foi uma americanização do título. De certa forma, é uma coisa que está presente no filme todo, na sua própria figura, e em muitas outras coisas, até mesmo na própria Alhandra. Há uma série de marcas da América em Alhandra, que sem querer aparecem, é incrível. Não é preciso procurá-las, que elas estão lá, trazem esta ideia da América em todo o lado. Penso que foi isso, foi um transbordar para o título deste espírito de americanização que o filme tem. Uma americanização barata… (risos)

 

O filme é uma produção da Terratreme, da qual fazes parte há mais de uma década. Ao longo dos anos tem tido uma boa presença nos grandes festivais mundiais como Cannes, Berlim, Locarno, Rotterdam, San Sebastian, entre outros. Como é que tem sido a época de pandemia? O trabalho tem-se mantido, adaptaram-se mais ao digital?

 

SN: É estranho trabalhar a distância. Por um lado tem coisas boas… Mas o teletrabalho não nos dá uma devolução daquilo que nós fazemos e isso às vezes não é bom em termos de relações profissionais, porque acho que pode criar más interpretações, suspeições… Acho muito interessante por um lado, mas por outro, acho que tem que haver aqui um equilíbrio.

No caso da Terratreme, o que isto provocou foi uma concentração dos calendários de rodagens todos para a mesma altura. Provavelmente, a partir de metade deste ano vamos ter ali um pico de trabalho concentrado nas rodagens. Tivemos alguns filmes que acabaram por arriscar e ser distribuídos durante o ano pandemia, através destes novos formatos do online, que foi o caso do “Amor Fati” da Cláudia Varejão. Eu também tenho a expectativa que isto seja temporário… acredito que haja um boom criativo depois disto, acho que pode haver um momento muito alegre depois desta situação. Acredito que isto tenha sido uma espécie de período de hibernação, ou sabática, que pode gerar algo muito interessante depois.

 

Voltando aqui ao filme “No táxi do Jack”, já têm ideia de quando será a estreia em Portugal?

 

SN: Não temos, eu gostava que estreasse perto da Berlinale, em Junho, Julho. Mas nós não sabemos o que vai acontecer com as salas de cinema…

 

E uma estreia online, seria uma possibilidade?

 

SN: Acho que não, porque o filme é uma cópia muito bonita. Não é projectado em película, é uma cópia digital, mas foi filmado em 16 mm e ganha imenso com a projecção, é uma cópia mesmo muito bonita. Por isso não queria mesmo abdicar da projecção em sala.

 

Por último, ainda que faltem uns mesinhos, se tudo correr bem em Junho estarás por Berlim. Conheces a cidade, estás com vontade de a visitar?

 

SN: Não conheço Berlim e acho que vai ser óptimo poder ir em Junho, se tudo correr bem. Provavelmente as pessoas vão estar a desconfinar, o festival já nem vai estar com o peso dos prémios e da competição. Acho que as pessoas vão estar muito disponíveis para estar umas com as outras… pode ser um momento muito alegre, acho que sim.

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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