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“A Grande Noite do Fado e Afins" I Ana Ribeiro e António Duarte em entrevista

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01/04/2021

Imagem: ©Promo

“A Grande Noite do Fado e Afins” é um filme onde se evocam noites de histórias, elogios, maledicências, tristezas, alegrias e saudade, enfim, a essência do fado vadio, criado pela dupla Ana Ribeiro e António Duarte. Chega agora a Berlim, numa co-produção com a Associação Berlinda, e estreará a 8 de Abril, pelas 20h, podendo ser visualizado até ao final do dia 10 de Abril.

 

Originários de Lisboa, Ana Ribeiro e António Duarte vivem em Berlim desde 2015, e estão activos desde 2011 com o projecto conjunto “Divas Iludidas”, que fez 14 espectáculos entre Lisboa e Berlim desde então. A Berlinda, em parceria com o PT Post, falou com Ana e António sobre este seu novo projecto, feito a partir de um espetáculo do seu repertório, e que, devido ao contexto de pandemia, foi totalmente transformado. “A Grande Noite do Fado” aparece agora como longa-metragem, um novo formato para ambos os artistas, uma nova experiência criativa e, sobretudo, uma nova esperança.

 

“A Grande Noite do Fado e Afins” estreou em Lisboa no ano de 2013. O que vos fez trazer o espetáculo para Berlim?

 

Ana Ribeiro e António Duarte: A ideia de trazer este espectáculo para Berlim tem a ver com a nossa relação enquanto artistas portugueses a viver em Berlim. O fado, sendo o símbolo musical de Lisboa, foi o mote. Mas queríamos trazer o fado vadio, livre, de um submundo que desaparece/desapareceu. O outro lado do fado, um outro lado do que é ser português. Como o nosso trabalho tem sempre uma componente de crónica política, este espectáculo em particular tem um sítio muito livre, o que nos permite uma liberdade para a sátira.

É fado, mas podia ser cabaré, tanto que, musicalmente, andamos em vários sítios e não somente na sonoridade do fado. Aliás, um dos pressupostos deste trabalho foi sempre o de pegar em fados e os transformar noutra coisa (samba, bossa nova, tarantela, morna, etc.) e pegar noutras coisas e transformá-las em fado.

 

E porquê um espetáculo sobre o fado? De onde vem o fraquinho por esse cantar tão português?

 

AR/AD: “A Grande Noite do Fado” foi o espectáculo de estreia do espaço que nós (“Divas Iludidas”), juntamente com outros artistas independentes, alugámos em Lisboa: a Latoaria. É uma antiga fábrica nas escadas do monte entre a Graça e a Mouraria, um espaço

independente que nos permitia a liberdade de não estar dependente das coproduções dos teatros, soltos das políticas de programação. E ainda permite, pois continuamos na Latoaria.

Enquanto lá fazíamos as nossas obras, a sonoridade à nossa volta era a da Mouraria: o fado, as marchas, o folclore. Isso fez-nos querer criar um espectáculo que refletisse o bairro onde íamos começar a trabalhar.

Eu e o António começamos a pesquisar as origens do fado e chegámos ao fado vadio, um fado maldizente, de purga e de reação, profundamente combativo. Trabalhámos à volta da dimensão poética, interventiva e política que o fado teve no inicio do séc. XX aquando da 1ª República. O fado era a voz dos indigentes, dos revolucionários e libertários, cantava-se o fado a fazer política. Começamos a criar um paralelo da história do fado com a História Política Portuguesa no séc. XX, onde estas duas personagens encarnam, de alguma maneira, um arquétipo do que é o fado e do que é Lisboa, recuperando um dos lados formais da revista portuguesa. Sendo o José Vitorino o Fado e a Márcia a cidade de Lisboa, criámos então o Pátio da Margarida, um espectáculo de teatro que era uma noite de fado vadio.

Podem falar-nos um pouco mais do vosso projecto “Divas Iludidas”, que já fizeram em ambas as cidades, Lisboa e Berlim?

 

AR: É uma fusão de duas pessoas, dos seus universos distintos. O António vem do cinema e da música e eu venho do teatro. Uniram-nos as várias conversas sobre o mundo, a política, o nosso lugar enquanto artistas para refletir o mundo, o nosso lugar político na cidade, o entretenimento como arma de reflexão. A tentativa de, através da arte, criar espaço para o debate, para a reflexão. É um trabalho de cariz político sem ser partidário ou demagógico, quer seja nos nossos espectáculos, quer seja nas nossas decisões enquanto artistas. Como por exemplo alugarmos um espaço, quebrarmos o ciclo vicioso das relações de poder, criarmos outras alternativas. Quanto mais variada, menos poder concentrado, e mais espaço para a reflexão houver, mais forte se torna a nossa democracia.

Fascina-nos o poder da palavra, do som da música como língua universal. O poder do teatro radiofónico, os nossos primeiros espectáculos, um tríptico a partir de George Orwell. Eram peças radiofónicas, interrompidas por quadros onde utilizávamos vários formatos, como o spoken word, o musical, o monólogo, mas sempre como instantes, como se de um sonho se tratasse. Foi com estes três espectáculos que eu e o António percebemos o que nos unia enquanto criadores.

Usando diversos formatos, tentamos sempre criar uma imagem caleidoscópica das questões que temos sobre o mundo que nos rodeia, inclusive questões biográficas, como mudar de país ou aprender uma nova língua. Tudo isso é matéria de trabalho. Pensamos e cantamos a polis. Pensamos e cantamos a cidade e a vida.

O nosso trabalho teve sempre a característica de não ser estanque no sentido formal, de termos sempre a liberdade de trabalhar vários formatos e géneros. A questão dramatúrgica, musical, da sonoplastia, o lugar onde queremos colocar o espectador, quer seja numa casa de fado vadio, na corte de uma rainha do submundo, numa sala de concertos, num espectáculo de teatro radiofónico, ou numa antiga fábrica onde uma companhia ensaia “O Feiticeiro de Oz” enquanto lá fora as ruas estão vazias.

Quando foi o último espetáculo que fizeram em Lisboa?

 

AR: O último espectáculo que fizemos em Lisboa foi em 2018 na Latoaria, sempre na Latoaria. Neste momento, é a minha casa em Lisboa, o meu porto seguro. Intitulava-se “A Rainha”, e foi feito a partir “d’O Balcão”, de Jean Genet, com a maravilhosa Paula Só e os talentosos Paulo Duarte Ribeiro e Victor Gonçalves. Tivemos sempre a sorte de trabalhar com performers extraordinários e infinitamente generosos nos 10 anos das Divas Iludidas, tanto em Lisboa como em Berlim. Sempre tivemos público, embora tenhamos sempre trabalhado na cena independente de Lisboa, com poucos ou nenhuns meios de divulgação.

É um público que nos acompanha e é um público anónimo, desde a pessoa que já não ia ao teatro há muitos anos, como as pessoas que nunca foram ao teatro e agora vão sempre. Eu gosto do público anónimo. Isso é algo que, ao estar em Berlim, é maravilhoso. O teu trabalho ou comunica ou não, ninguém te conhece. Fascina-me esse lado anónimo enquanto artista. Gosto de comunicar para o mundo através do meu trabalho.

 

Porque é que se mudaram para Berlim?

 

AR: Mudámo-nos para Berlim no Verão de 2015. Há muito que pensávamos em sair de Portugal para viver. Não tínhamos essa experiência e para qualquer um dos dois era importante passar por ela, pelo menos uma vez na vida. E como temos uma filha (que na altura tinha 7 anos), tomar uma decisão tão radical também implicava o seu bem estar, por isso mudámos, pois ela estava no limite da idade de ter uma adaptação tranquila. E Berlim foi o único local que nos pareceu apetecível.

Mas acima de tudo era importante experimentar uma nova vida, sair da zona de conforto, começar do zero, aprender uma nova língua, adaptar e evoluir. O Mundo é demasiado grande para se viver sempre no mesmo sitio. Esse acabou por ser o mote dos trabalhos que apresentámos desse ano. Teremos sempre Lisboa... Teremos sempre a Latoaria. Parece uma frase de uma marcha...(risos)

A ponte entre Lisboa, neste caso, a Latoaria, e Berlin, faz parte do nosso percurso e vai continuar a fazer.

 

Nos últimos anos têm concertado os vossos espetáculos em Berlim. Como é que tem sido criar espetáculos na capital alemã? São semelhantes aos que fazem em Lisboa?

 

AR: Naturalmente, ao estarmos a viver em Berlim, o nosso trabalho concentrou-se aqui nos últimos cinco anos. Nós que sempre trabalhámos a palavra, a sonoridade, agora temos que comunicar através de várias línguas, o que fez com que o nosso trabalho ganhasse também essa dimensão da criação de uma língua de babel, onde se comunica em português, alemão e inglês, como línguas estruturais. Não quer dizer que não se fale turco, espanhol, italiano, japonês, francês... É o fascinante de viver numa cidade como Berlim, a minha relação com o mundo torna-se quotidiana, logo o meu trabalho tem um reflexo disso.

Trabalhamos muito no limbo do que é real e do que é fictício. Mas tudo está escrito, as personagens bem definidas. O nosso trabalho não é estanque tal como o mundo não é estanque. Logo não fazemos reposições. A Grande Noite do Fado de 2013 nunca será a mesma de 2021, e um espectáculo em Lisboa não será o mesmo que um espectáculo em Berlim. Este trabalho perante as condições quer geográficas, quer temporais, quer linguísticas, é o que me mais apaixona no trabalho artístico. Estes acidentes, acasos, são todos fontes de inspiração. Tal como a situação do cancelamento do espectáculo por causa dos lockdowns foi o que despoletou o inicio de um novo argumento.

 

Têm planos (ou vontade, pelo menos) de organizar novos espetáculos em Portugal (Lisboa ou outra cidade) em breve?

 

AR: Claro que sim, esta ponte entre Berlim e Lisboa é essencial para o nosso trabalho pré e pós-Covid-19. Temos uma planificação para o último semestre de 2021 e 2022 para projetos que envolvem a Latoaria, mas tudo depende de financiamentos e das próprias regras que nos serão impostas neste tempo de pandemia.

 

Imagino que a pandemia não vos tenha ajudado nem um pouco neste último ano... como tem sido a vossa experiência? Têm acompanhado também o que se passa em Portugal?

 

AR: Como é natural, tenho acompanhado de perto tudo o que se passa em Portugal. Vejo que se vivem realidades diferentes. Sinto-me previlegiada por estar a viver esta situação em Berlim pelo simples facto de saber que tenho um sistema que me vai proteger da pobreza, se for necessário. Enquanto artista em Berlim o meu trabalho é valorizado, respeitado como força laboral essencial na evolução do país pelo governo, pelos media, pelos vários partidos políticos, pela sociedade civil. Embora tenha deveres, tenho direitos também. O mesmo não se passa em Portugal. Mas penso que para falar seriamente disto tinha de se falar de corrupção, nepotismo, falta de transparência, fiscalização, ética, os temas clássicos quando se debate Portugal com seriedade. Bem, mas isso já seria outra entrevista... (risos)

Em maio de 2020, depois do primeiro lockdown, tínhamos um espectáculo sobre três estados de espírito que as pessoas estavam naquela altura a sentir conforme o acesso que tinham aos media. Mas, perante as incertezas de salas abertas ou fechadas, acabámos por cancelá-lo. O trabalho em streaming não nos faz sentido. Aliás, o nosso trabalho deixou de fazer sentido. Resolvemos parar, até para perceber do que falar e como falar. Inclusive houve um momento em que decidimos mesmo parar de todo o trabalho artístico.

Não nos fazia sentido, até que veio a proposta da Berlinda para fazer em streaming e foi o suficiente para despoletar todo um processo criativo. Estivemos fechados em casa a editar o filme nos últimos 3 meses. A pandemia trouxe-me o cinema como novo formato a trabalhar. Os espectáculos ao vivo, enquanto as regras forem estas, não faz sentido.

 

Estão, portanto, a trabalhar num formato completamente novo. Como é que se desenvolveu este processo criativo e em que fase estão neste momento?

 

AR/AD: Para nós o streaming não faz sentido num trabalho que foi todo pensado e que dificilmente vive para lá da relação ao vivo com o público. Decidimos então fazer um filme. O António já tinha experiência como realizador e para mim sempre foi um formato que me interessava explorar para além do trabalho como atriz.

Iniciamos então esse processo, utilizando as duas personagens centrais do espectáculo: o José Vitorino e a Márcia. Dois fadistas do submundo de Lisboa, de uma Lisboa que já não se conhece. Vêm a Berlim participar no evento comemorativo da tomada de posse da Presidência do Conselho da União Europeia, mas o espectáculo ao vivo é cancelado devido ao Coronavírus. É-lhes proposto fazerem-no em streaming, mas eles recusam, pois “Fado em streaming é uma impossibilidade”. A realizadora, que ia acompanhar a apoteose destas duas figuras icónicas do submundo do fado lisboeta, convida-os para jantar. E, em vez de um documentário, fez-se fado.

Em vez de um espectáculo fez-se um filme (uma longa metragem). As personagens principais, os dois fadistas, são dois actores com quem trabalhamos regularmente, o José Miguel Vitorino e a Márcia Cardoso (inclusive em dois espectáculos que já fizemos em Berlim). E estamos agora na loucura da edição do filme.

 

O que é que o público pode esperar deste espetáculo-filme? Vai haver aquela lágrima no canto do olho?

 

AR: Mais do que tudo, espero que as pessoas se divirtam, chorem, pensem e cantem com esta sátira sobre os tempos que vivemos através do olhar destes dois fadistas, através da história cantada e vivida.

 

Rita Guerreiro

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Licenciada em Audiovisual e Multimedia pela ESCS – Escola Superior de Comunicação Social (Lisboa), chegou a Berlim em 2010. Depois de ter participado em vários projectos de voluntariado e iniciado o Shortcutz Berlim, juntou-se à nova equipa Berlinda em 2016 e é desde então editora do magazine, para o qual contribui com vários artigos e entrevistas. 

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